segunda-feira, 30 de junho de 2014

Será que vivemos num mundo de egoístas?

Pá eu acho que já é um bocado cansativa...não, não é cansativa. Chata. Não...tremendamente desconcertante. No sentido de me fazer arreganhar os dentes e urrar de tanto desconcerto. Ter desarranjos intestinais psicossomáticos causados pela raiva acumulada. Pronto, digamos que não ando bem, e não tem nada a ver com a selecção. Ok, se calhar tem um bocadinho. Mas não ando bem sobretudo com esta moda actual de se ser pai ou mãe como por exemplo o Miguel Veloso é jogador da selecção: "uau, é tão bom estar aqui, é a melhor experiência da minha vida e tal". Mas na realidade estão visivelmente em gestão de esforço, a pensar nas caipirinhas que estariam a beber numa vida alternativa. O pior, é que ao contrário do Miguel Veloso - talvez isso aconteça no próximo mundial, se a tendência de queda livre se mantiver - é que a um pai ou uma mãe, é aparentemente de bom tom vir a público declarar essa sua insatisfação. É visto como uma prova de honestidade e coragem, ao nível de alguém que declara por exemplo a sua homossexualidade: "Ser pai é uma merda, ainda não percebi como é que me meti nisto. Com a frustração sou um pai de merda e tudo isto é uma merda. Mas atenção, os meus filhos são espectaculares!" "Bravo! Batam palmas! Obrigado por partilhar a sua experiência! Próximo!" "Olá a todos. Ser mãe é uma merda, o meu marido não faz um car.........., só quer ver bola, e com a exaustão sou uma mãe de merda. É óbvio no entanto que pelos meus filhos faço todos os sacrifícios de bom grado e eles merecem porque são a melhor coisa do mundo!" "Bravo! Próximo!"...

Eu quando vejo este tipo de coming out versão fralda e perdolan, avidamente difundida pela generalidade da comunicação social escrita, já para não falar dos blogs dos próprios, tento, já com os calores a subirem-me, encontrar algum sinal de lucidez nos comentários ao texto, mas sempre em vão. Aparentemente entre quem se manifesta há três filosofias quanto à paternidade: ter filhos é uma merda e por isso não tenho nenhum e aproveito a vidinha; ter filhos é uma merda mas como já tenho, agora é aguentar; ter filhos é uma merda mas é profundamente egoísta sobrepor os meus desejos pessoais ao dever moral de ter filhos. Imagino que isto está mais ou menos por ordem de modernidade de quem dá as opiniões. É óbvio que depois de ler algumas pérolas destas tento invariavelmente escrever o meu próprio comentário, interrompendo de vez em quando para soltar mais alguns urros de desconcerto, e acabo por ser informado um pouco mais tarde que o meu comentário foi rejeitado por uso de linguagem imprópria. Acho isto tremendamente injusto porque, mesmo a meio de um ataque de raiva espasmódica pauto sempre por uma linguagem cortês e refinada. Não sei por exemplo o que é que informar uma senhora, que aparentemente ganhou numa rifa o direito de escrever crónicas semanais sobre maternidade num jornal online, que aquilo a que chama marido é na realidade um Neanderthal fertilizador tem de impróprio. Eu gostaria que me avisassem se tivesse um Neanderthal em casa! Sobretudo fertilizador. Não tenho sabonetes na banheira, mas com estas coisas todo o cuidado é pouco! Não compreendo a reacção.

Ponho-me a pensar: antes as pessoas não eram assim. Tudo bem que nunca houve um momento em que se erguessem recém-nascidos aos céus com a música do Rei Leão em fundo a agradecer a bênção dos deuses, como se vivêssemos numa pandemia de infertilidade. Mas afirmar que ter filhos é um sacrifício e declarar resignadamente a sua incompetência como progenitor, com a mesma ligeireza como a Carrie Bradshaw admitia que usava o forno para guardar sapatos, ser aclamado como a maior verdade posta a nu nos nossos tempos, como um grande tabu agora destruído, é estranho e preocupante na minha opinião. Será que, tal como antes ficava bem a uma mulher que queria ser moderna declarar que não sabia cozinhar, agora fica bem dizer-se que não se sabe e/ou não gosta de ser mãe/pai? Será que nestes tempos de stress e globalização vivemos num mundo de egoístas?

Há uns dias um amigo meu estava a defender pela enésima vez a sua tese de que não faz sentido, não é honesto e no limite até é hipócrita, designar um determinado comportamento como egoísta ou como não egoísta. Diz ele que não há um único comportamento humano, um único gesto voluntário ou involuntário, que não seja para interesse próprio. Estar por isso a criar uma separação artificial entre eles de egoísmo ou generosidade não faz o mínimo sentido e só serve para enganar os outros e a nós próprios. Eu admito que concordo com esta ideia e alargo até o seu âmbito a todos os seres vivos. Talvez já tenha existido alguma célula anjo-da-guarda que não agia continuamente para o seu interesse próprio, mas o processo de selecção das espécies tratou rapidamente de a remover como defeito de produção.

Então se todos os pais sempre agiram por interesse próprio, porque é que os actuais parecem tão mais desiludidos com a experiência parental? Aqui tenho que me socorrer da minha própria experiência: tenho 3 filhos com 1, 2 e 3 anos, nem eu nem a minha mulher sabemos o que são noites mal dormidas, a não ser excepcionalmente por causa de alguma doença, não sabemos o que é apanhar uma seca a embalar ou dar comida, não conhecemos o ritual do "vai tu" "não, vai tu", trabalhamos os dois a full-time, a minha mulher acabou de tirar um mestrado e eu vou iniciar agora uma segunda licenciatura, etc. Peço desculpa, o meu objectivo não é armar-me em mete-nojo mas estou só a clarificar o contexto para a minha opinião neste assunto. Admito no entanto que há um catch. "Ahh, bem me parecia. Têm uma ama a tomar conta das crianças." Não, nunca tivemos ama a não ser num punhado de vezes para ir a concertos ou algo do género e cada uma delas foi para a creche com 9 meses. "Ok, então têm alguém da família a ajudar?" Não, mudámos de país há alguns anos e não temos família nenhuma cá. " Então qual é o catch afinal?" O catch é que, entre o momento em que decidimos ter filhos e a primeira gravidez, tivemos oito anos de preparação em que praticamente tudo foi mudado em função desse objectivo, incluindo, como já referido, o país de residência. Quando finalmente começámos a ter filhos estava já tudo tão preparado que tem sido um autêntico passeio.

Não consigo perceber as pessoas que tomam as decisões mais importantes das suas vidas de ânimo leve. Sou muitas vezes acusado de ser demasiado planeado e rígido mas não podia discordar mais: sou a única pessoa que conheço sem qualquer tipo de hábitos. Mesmo um hábito tão elementar como almoçar todos os dias me escapa se estiver ocupado com qualquer coisa e ninguém me chamar a atenção. Nem preciso dizer que não consigo criar o hábito de escrever no blog... Adoro conduzir por um caminho que não sei onde vai dar, comer algo no restaurante que nem percebi a descrição, conversar com um colega de outro país que não conheço, explorar culturas diferentes, etc. Na minha casa às vezes não há comida, outras vezes não há roupa lavada ou passada a ferro, os meus sapatos ficam verdes antes de me lembrar de os engraxar, nunca me lembro de tratar dos impostos a tempo e recebo avisos todos os anos. Definitivamente rígida é que a minha vida não é, a não ser que seja rigidamente aleatória. No entanto quando me deparo com uma decisão de ter filhos, de comprar uma casa nova, de mudar de emprego, etc. é algo que me faz sentir um peso de responsabilidade que me exige muita ponderação antes de fazer seja o que for. Às vezes parece-me que há pais que perdem mais tempo a escolher os convites para o baby-shower ou a cor para as paredes do quarto do bebé do que o que perderam (ou ganharam, talvez mais correctamente) a decidir ter um filho. "Fui um granda maluco e comprei uma casa por impulso. É mesmo a casa dos meus sonhos! --//-- Este fim-de-semana vou tentar arranjar os canos da casa de banho que rebentaram. Se calhar tem alguma coisa a ver com a infiltração na parede do quarto...comprar casa é uma merda!" "Só o conheci ontem mas já sei que é o homem da minha vida! Vamos viver juntos já a partir de amanhã! ---//--- Aquela besta não levanta o cu do sofá, cheira mal e tem o hábito estúpido de arrotar as respostas do Quem quer ser milionário! Os homens são mesmo uma merda!" "Nem percebi muito bem como, de repente nasceu o puto, e a minha vida pessoal foi pró caraças! Ser pai é uma merda!"

Ser pai não é bom porque (ou só porque) estou a assegurar a minha imortalidade genética, ou porque estou a dar o meu contributo para salvar demograficamente a população portuguesa, ou porque é moralmente e socialmente bem visto, ou porque a minha relação com a minha mulher sai beneficiada e enriquecida, ou porque fico com um plano B caso a Segurança Social dê mesmo o berro, ou porque mulheres de todas as idades olham para mim quando passo enquanto sorriem e fazem "Oooohh!", ou porque me rio mais com os meus filhos do que quando vejo um episódio do Seinfeld e fico com cãibras nas bochechas de ficar horas seguidas a sorrir, ou porque tenho o privilégio de observar a formação de três seres humanos desde as etapas mais elementares, ou por isto ou por aquilo. Ser pai é bom porque eu próprio, ignorando tudo o resto, de uma forma egoísta, ganho imenso em ser pai. Sou uma pessoa melhor, mais completa, mais realizada em ser pai. Se me apetece às vezes largar tudo e ir simplesmente para uma esplanada beber uma cerveja? Claro. Mas será que me apetece fazer disso um hábito? Por exemplo quando era miúdo, às vezes estava frustrado e apetecia-me simplesmente espernear no chão e atirar tudo pelo ar como se ainda fosse bebé. Mas o que é que tinha realmente a ganhar com isso? Deixamos de o fazer não porque recebemos uma lavagem cerebral da sociedade como alguns fazem crer mas sim porque compreendemos que é uma manifestação vazia de significado e apenas nos permite uma libertação catártica que pode ser alcançada noutra actividade qualquer. Da mesma forma, às vezes sinto-me stressado, apetece-me fazer algo sozinho ou com amigos e por vezes faço-o mesmo porque tenho essa possibilidade. No entanto preencher a minha vida com momentos desses parece-me incrivelmente vazio de relevância e de interesse. A paternidade está a ser mais um patamar da minha evolução como pessoa e, em vez de pensar nostalgicamente sobre o anterior, aguardo ansiosamente pelo próximo, o que quer que ele venha a ser.

Os pais dos nossos pais, aqueles pais que só olhavam para os filhos para dar ordens ou porrada, tinham a desculpa de não existir televisão nem contraceptivos. Tinham a desculpa de não terem tido educação nenhuma e o pensamento obscurecido por tradição e religião. Tinham a desculpa de todos naquela época verem os filhos como braços adicionais de trabalho. Que desculpa têm os pais e mães bem formados e informados de agora para se declararem alegremente uns totais incapazes em parentalidade? É moda? É corajoso e honesto declarar que ser pai é um sacrifício e uma perda pessoal?! Hilariante! $#%#/$%"# para vocês todos! Coragem é trabalhar a sério e aceitar toda a responsabilidade de tomar conta de novos seres humanos, tão importantes como nós próprios, durante a fase mais frágil das suas vidas. Honestidade é assumir sem rodeios que não estamos preparados ou ainda não estamos preparados para o fazer. Ter filhos e depois queixar-se das consequências revela falta de ambas as coisas.

Pelo mar de opiniões da treta veiculadas e de crianças mal criadas, com distúrbios alimentares, de sono, de atenção, sem resistência à frustração, com hiperactividade, obesidade, etc. decreto uma chuva de napalm sobre os pais (ir)responsáveis e peço desculpa aos órfãos. Liguem à Angelina Jolie que acho que ela ainda não adoptou ninguém este ano.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Imergir ou emergir: eis a questão - Diagnóstico

Pá eu acho que é de mau gosto vir nesta fase do campeonato com conversas de dívida, deficit, etc. Era baseado nesse tipo de análise que eu tinha pensado começar a fazer o diagnóstico do país mas esse planeamento foi feito semanas antes do pedido de resgate (estou a candidatar-me ao record do Guiness para post de blog mais tempo em preparação) e sei que se vier agora com essa conversa corro o sério risco de ser vilipendiado à bruta por todos os que de boa fé iniciarem a leitura deste texto. Por outro lado não há nada que eu possa realmente trazer de novo ao conhecimento em análise económica e financeira dos leitores do blog, já que durante estes últimos dois anos e tal o conhecimento da generalidade dos portugueses em matérias económicas aumentou exponencialmente. Aliás, um exemplo perfeito disso é o caso recente dos swaps: ainda as primeiras notícias não tinham mais que um par de dias, os jornalistas tentavam descobrir como se escrevia aquilo, se era um acrónimo, etc. e já toda a gente tinha percebido perfeitamente o que se passava (que obviamente lhes tinham ido mais uma vez ao bolso) e já exigiam que rolassem cabeças. Assim sim. Assim dá gosto! Chega de aproveitamentos demagógicos da ignorância da população! Agora todos podem discutir em pé de igualdade. Ainda me lembro há uns anos (é melhor não me tentar lembrar exactamente quantos), numa aula de actividade bancária, estarmos a fazer um exercício sobre swaps, e deparando com resultados contraditórios o professor ter nervosamente despachado "tentem resolver em casa e na próxima aula corrigimos". Que evolução! Quem te viu e quem te vê, Portugal. Acho que se continuarmos assim, o país vai passar a liderar o nicho de turismo de economia (não confundir com turismo económico em que também damos cartas). Por exemplo: na Índia está tudo na miséria mas qualquer um é mestre em matérias de espiritualidade. Até o papa se lá for, sai do avião, entra num táxi, e quando sai do táxi já está convertido a adorador de Brahma ou Vishnu ou Shiva. Em Portugal da mesma forma estará tudo na miséria mas todos serão génios em matérias económicas. Qualquer estrangeiro que entre no nosso país, mesmo com habilitações ao nível dos nossos actuais políticos, se tiver o hábito por exemplo de ir todos os dias almoçar a uma tasca, tem a possibilidade de sair como sério candidato para o próximo prémio Nobel da Economia!

Independentemente do que escrevi no parágrafo anterior, tenho que fazer uma ressalva e uma excepção. A ressalva é que esta série de posts não é sobre a crise que enfrentamos actualmente mas sobre a mãe de todas as crises: o país que todos amamos, com este amor rabugento mas inabalável, tipo casal de velhotes. A excepção é que vou ter que incluir uma parte já escrita há mais de dois anos e entretanto perdida e reescrita para que se perceba a escolha do título dos posts, senão ficaria algo enigmático:

Para fazer o diagnóstico do país, posso começar por dizer metaforicamente que ele está quase totalmente imerso em areias movediças. Eu garanto que não queria começar isto logo com uma imagem catastrofista mas para já o mais importante é ser facilmente visualizável e "impressiva" (usando um inglesismo da moda para verem que apesar do estilo de escrita torpe tenho as qualidades necessárias para enviar textos para a imprensa portuguesa) e não me consegui lembrar de exemplo melhor.

Continuando: Portugal (podem imaginar um Zé Povinho) está portanto parcialmente imerso em areias movediças, mas olhando à sua volta verifica que todos os outros países também o estão - uns mais, outros menos, uns pelos tornozelos, outros completamente mergulhados, mas não há ninguém que esteja fora. Alguns podiam se quisessem mas não querem, talvez por causa das propriedades dermatológicas das areias. Estes são os países emergentes, ou como se diz agora: "os que têm dinheiro para nos ajudar". Outros países, com graus variáveis de imersão, mesmo querendo não conseguiriam sair das areias e por regra estão a afundar lentamente. Este grupo, no qual está Portugal, é o dos países imergentes, ou como gostamos mais de dizer: "desenvolvidos". Os países que estão totalmente imersos são os países que se designavam por "subdesenvolvidos" mas a que agora de uma forma mais politicamente correcta, mas infelizmente menos exacta, apelidamos com um sorriso solidário nos lábios de "em vias de desenvolvimento".

Voltando a Portugal, constatamos que, além de estar literalmente com a barba de molho, com o transtorno evidente de assim não conseguir fazer manguitos visíveis, esse estado de imersão agrava-se continuamente, ou seja está a afundar-se cada vez mais. Constatamos ainda que além de estar quase totalmente imerso e de estar continuamente a imergir, a velocidade dessa imersão é crescente porque Portugal se mexe freneticamente, questionando-se os outros países se será assim afinal que se dança o fado ou se se trata do efeito do consumo excessivo do bom vinho português.

E agora começo a ouvir exclamações: "Mas este gajo disse que ia ser mais claro e directo e sai-se com isto?!" Calma. Agora que a visualização criada já tem a "resiliência" (pimba! Já estou a chegar ao nível de um colunista de jornal económico) necessária para servir de âncora aos próximos posts, passo a explicar: as areias movediças são a dívida do país, o afundamento é o deficit (da balança de pagamentos, não o do orçamento de estado) e o aceleramento desse afundamento é o nosso comportamento, atitude, decisões, governação, etc. Portanto a conclusão em versão curta é que a dívida não é por si só um problema: a informação fundamental para os credores não é a quantidade de dívida mas a capacidade de a ir pagando, quer o assunto sejam as dívidas do país ou o nosso crédito à habitação; essa capacidade de ir pagando é dada pelo deficit: se há deficit quer dizer que perdemos dinheiro e se perdemos dinheiro não podemos pagar dívida nenhuma. Pelo contrário, temos até que criar novas dívidas; haver ou não haver deficit é decidido por uma quantidade enorme de factores a que vou chamar comportamento. Talvez mais correcto seja dizer que é a combinação do comportamento actual e os efeitos actuais de comportamentos passados. Continua a ser uma grande simplificação mas o importante é dar o ênfase à responsabilização própria e não alheia (tal como se gastarmos mais dinheiro que o valor do nosso salário, podemos culpar meio mundo a começar sempre pelo Estado, que a verdadeira responsabilidade nunca deixa de ser nossa).

Este diagnóstico segue uma dinâmica parecida com um episódio do dr. House: está dr. House a mandar bocas foleiras a uma série de pessoas entre pacientes e equipa médica, quando dá entrada no hospital uma senhora, de seu nome Vanda Lisa Rego de Portugal, queixando-se de alguns sintomas que o nosso maior ídolo das séries reais-porque-mostram-coisas-nojentas considera banais. É enviada prontamente para casa com uma recomendação para descansar e uma série de observações mais ou menos desagradáveis sobre a sua forma de vestir, a sua vida amorosa, etc. A paciente segue as instruções, mas enquanto está a preparar o jantar desmaia subitamente e é levada de urgência novamente para o hospital. Depois de alguns testes, de umas conversas novamente não muito edificantes e de ficarmos a conhecer um drama pessoal de alguém da equipa médica, conclui-se que afinal a doente padece de um problema grave mas que é explicado por uma epidemia causada por uma bactéria particularmente agressiva mas cujo tratamento já foi determinado pelas autoridades médicas internacionais e que passa por tomar um certo antibiótico durante aproximadamente dois anos. A equipa inicia prontamente a administração do fármaco e tudo corre bem até que, em vésperas de ser dada alta, e exactamente durante uma conversa íntima, que até está relacionada com o tal drama pessoal da pessoa da equipa médica, a paciente tem uma série de espasmos e entra em paragem cardio-respiratória! Dr. House percebe finalmente que está aqui um desafio à sua altura e dedica-se ao caso da sra Rego de Portugal a fundo pelo que, depois de se embebedar e ofender umas quantas personagens do sexo oposto, conclui finalmente tratar-se de um problema genético raríssimo, que ameaça transformar o cérebro da doente em papas de sarrabulho se nada for feito na próxima hora. Feita essa descoberta e depois de enviar um rápido SMS ao seu amigo Hannibal Lecter a informar que hoje talvez leve jantar, ordena à sua equipa que se ponha imediatamente em campo para localizar um dador de um certo líquido constituinte do plasma sanguíneo designado nos meios científicos por liquido $, recordando-os que só alguém que tenha abundância desse líquido no seu plasma pode ser dador. Felizmente a extracção de pequenas quantidades não põe em perigo a saúde de quem cumpre esse nobre gesto, causando apenas, entre outros efeitos secundários, um desarranjo geral, mudança de humores, maus fígados e dor de cotovelo. Localizados alguns dadores e feita a primeira transfusão de líquido $ exactamente quando o cronómetro para as papas chegou a 0, o estado de saúde da paciente estabiliza por fim, para gáudio de todos que abrem prontamente uma garrafa de bom champanhe americano, enquanto dr. House a um canto manuseia nervosamente o telemóvel, por qualquer razão que não quis explicar. No final do episódio surgem médico e paciente, já recuperada dos seus sentidos, a discutir as alternativas de tratamento futuro: como já foi referido o problema é raro, e por isso não há certezas, mas dr. House acredita que se poderá reiniciar a produção de líquido $ no organismo, se a sra Portugal passar a cumprir um regime ascético de pão e água q.b. e muita oração a nossa senhora de Fátima, por tempo indefinido. Por outro lado existe sempre a hipótese de nada fazer, fingindo ou não que algo está a ser feito, e continuar a depender de transfusões regulares de líquido $, assumindo que pode contar eternamente com a boa vontade dos dadores, já que não existe um sistema organizado de recolha para este, como existe para outros fluidos internos. Curiosamente, o episódio termina antes de conhecermos a decisão, como que por generosidade nos dessem a hipótese de escolher o nosso próprio fim: pão, água e fé na virgem, ou transfusões e fé nos dadores, que opção será melhor para Vanda Lisa R. Portugal?

Como foi dito, o problema da senhora Vanda Lisa é genético, e como tal tem afectado membros da sua família de poucas em poucas gerações, pelo que durante a história do nosso país existem diversos episódios em que há um Portugal a decidir se há-de explorar-se a si próprio ou a outrem. Por exemplo, ainda recentemente, houve um Portugal a viver a pão, água e oração, segundo os conselhos de um dr. Salazar que, de tão competente conseguiu convencer o seu paciente, não só a seguir esse regime, mas também a acreditar piamente que essa era a forma mais correcta de se viver, independentemente do estado de saúde. Para isso utilizou métodos diversos, de forma imaginativa. Para demonstrar a sua eficácia basta ver que ainda hoje, descendentes do Portugal da época continuam influenciados por uma série desses métodos. Continuam por exemplo a cantar alegremente: "No conforto pobrezinho do meu lar, / há fartura de carinho. / e a cortina da janela é o luar, / mais o sol que bate nela... / Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar / uma existência singela... / É só amor, pão e vinho / e um caldo verde, verdinho / a fumegar na tigela.", e a acreditar que "pobrezinho" e "singela" são adjectivos positivos, enquanto que por exemplo "ambicioso", como todos sabemos, é negativo.Talvez seja um médico destes que a actual Portugal precise para aceitar pacificamente a vida ascética, mas não desesperem porque se se continuar a adiar uma decisão para resolver o problema, é cada vez mais provável que um se apresente.

Antes desse recente membro da família, existiram outros Portugais que, aproveitando os muitos recursos que na altura detinham, ao contrário da pobrezinha sra Vanda Lisa que tem que depender da boa vontade de outros, arrebanhavam dadores convencidos rapidamente a voluntariarem-se. Fizeram-no em África, no Brasil, na Ásia, e graças a isso puderam continuar a levar uma existência pouco singela. Outro houve que achou que conseguia arranjar voluntários em Marrocos e acabou a ameaça das papas de sarrabulho por se cumprir. E tão boas deviam estar que nunca mais o devolveram.

Mas afinal o que está na origem deste problema genético? E será que a família Portugal está eternamente condenada a ter que optar entre duas opções tão extremadas: ser asceta ou viver à conta?

(continua)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Imergir ou emergir: eis a questão - Introdução

Pá eu acho que devo uma resposta a toda gente, toda a multidão de pessoas que sabem quem na realidade se esconde atrás da máscara do Achador e que ao me ouvirem responder: "Não, o blog não está fechado! Tenho é passado o último ano a fazer pesquisa para o próximo post.", e quando finalmente percebem que eu não estou a gozar, exclamam invariavelmente: "Porra! Tu não existes!". A esta reacção e à dúvida malévola e subrepticiamente criada sobre a minha existência, eu declaro: Acho, logo existo! Estou a pensar se hei-de pôr isto por baixo do título do blog como forma de prevenir que continuem para aí a sugerir que eu não existo.

(Cliquem no canto esquerdo antes do nome para tocar a música sem abrir o link) Esclarecendo esse ponto inicial, tenho contudo que reconhecer que, para quem se propõe apenas a achar, 1 ano de pesquisa não faz muito sentido. Até parece que me estou a propor a pensar, a informar, a emitir uma opinião bem fundamentada em factos concretos. Livra! Nada temam caros leitores! Nada mais longe da realidade. Sucede apenas que ao tomar conhecimento há um ano de que nos tempos actuais, com apenas 4 cadeiras se faz uma licenciatura, com uma licenciatura desse género se chega a Administrador de grupos económicos, com apenas meses dessa actividade ou outra qualquer se tem uma rica e extensa carreira profissional, digna de ser usada como arma eleitoral e que após essas ou outras eleições se podem já escrever livros de memórias enquanto se usufrui de uma boa reforma, temi seriamente acordar um dia para descobrir um texto meu deste blog publicado numa revista científica, por ter sido escrito às três pancadas. Resolvi então demarcar-me, pesquisando longamente para poder dizer que estou apenas a achar, não é para ser levado realmente a sério.

O objectivo deste post é ambicioso: arrumar com Portugal. Alguns dirão "Demoraste muito tempo pá. Já houve quem entretanto tratasse disso.", forçando-me a clarificar: o meu objectivo é arrumar com a série de posts seguidos que tenho escrito sobre Portugal. A minha vida não é só o blog e o blog não é só Portugal, por isso convém que este seja o último post sobre este tema durante os próximos tempos para não dar a ideia errada de que criei o blog propositadamente para mandar bitaites para lá/aí, como que para fazer pirraça, agora que me pus a salvo dos efeitos da sua inépcia generalizada.

A série de posts sobre Portugal tem sido motivada pelo estado actual do país, a viver mais uma inevitável crise e por outro lado mais receptivo a discutir-se a si próprio. Para conseguir concretizar o objectivo deste ser o último post, e como tento sempre ser alguém construtivo, tenho que de alguma forma contribuir para a compreensão de porque é que desde que a memória alcança estas crises se sucedem, porque é que o país persiste em desenvolver-se menos que os seus vizinhos, e se possível, de que forma é que isto pode ser solucionado. Seria aquele achado utópico que nos permitiria finalmente encontrar o caminho para fora do nevoeiro onde gerações de D.Sebastiões imaginários nos perderam.

Com este fim em mente, arregacei as mangas e comecei inofensivamente por analisar dados económicos. Da Pordata passei para o Banco de Portugal e o INE e daí para o Eurostat e a OCDE. Tentando perceber a realidade por trás dos números, li todo o tipo de documentos, e aproveito já agora para elogiar as publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que apesar de só serem encontradas nas lojas da Jerónimo Martins, quando não estão com uma promoção de 50%, chegaram até mim graças à boa vontade da minha mãe e ao serviço de transporte Euro-o-quilo do Sr. Brocardo. Um muito obrigado e um grande bem haja a ambos!

Achando que já compreendia mais ou menos a situação actual, decidi começar a retroceder no tempo para tentar perceber a evolução e descobrir quando é que em Portugal tinham existido mudanças significativas. Eventualmente percebi que isto é practicamente um oxímoro já que Portugal e mudanças significativas são conceitos quase contraditórios. Textos de há um e dois séculos atrás parecem ter sido escritos agora (mesmo o português estranho da época seria facilmente justificado dizendo que o autor adoptou o acordo ortográfico) daí que alguns sejam novamente citados nos tempos que correm.

Essa conclusão fácil não me ajudou minimamente no meu objectivo, por isso continuei a recuar até os documentos disponíveis de cada época começarem a escassear. Recomendo a biblioteca nacional digital: http://purl.pt/index/geral/PT/index.html para quem não tem nada de verdadeiramente interessante que fazer com o seu tempo, como é aparentemente o caso deste vosso amigo.

Terminado todo este processo de justificação de achamento, posso dizer que ao contrário dos outros posts, desta vez vou tentar ser mais claro e directo e gostava de focar-me naquilo que nós, a generalidade do povo português, pode fazer, porque a mensagem monopolista (por culpa de todos) é o que o Governo, os políticos, os banqueiros, etc. podem fazer, enquanto que para os outros "99%" a única coisa que sobra é a sensação de verdadeira ou aparente impotência e as duas "armas" do voto e da contestação, de eficácia reduzida a nula.

PS1: Depois de escrever cerca de metade do texto admito que aquilo que ia ser um filme teve que ser transformado numa série de episódios porque de outra forma não seria realista, mesmo para mim, esperar que alguém, sem ser pago para isso, conseguisse ler tudo.

Depois desta introdução, comecemos pelo diagnóstico actual...

PS2: Pá eu acho que sou uma indescritível besta! Não é que ao fazer algo tão banal para qualquer blogger que se preze, ou vá admitamos para qualquer pessoa que esteja a viver no século XXI, como dividir um post em várias partes, consegui a incrível proeza de apagar tudo menos a primeira parte? Cada vez que me lembro da quantidade de referências, links, etc. perdidos desato à cabeçada às paredes. Devo anunciar a todos que daqui para a frente serei uma pessoa um pouco diferente devido à quantidade de neurónios destruídos no processo.

PS3: Apesar de querer reconstruir o post, a verdade é que ainda não voltei a escrever mais nada e à medida que o tempo passa, a tentação de simplesmente deixar isto cair se torna maior. Decidi não deixar a frustração e a passividade ganharem, talvez por simples teimosia ou talvez porque acho que ainda tenho bastante para partilhar, e então publico agora esta primeira parte para me forçar a dar-lhe sequência em breve. Não será algo tão fundamentado como o original e demorará algum tempo para ser tudo (re)escrito mas a mensagem será a mesma e o mais importante neste momento é publicar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Boa, 37 anos! Mas vá lá agora a sério, quando é que começa a Democracia?

Pá eu acho que Portugal atravessa agora um momento que será visto no futuro como de viragem. Não por causa das eleições - independentemente de quem ganhar manter-se-á a mesma lógica bipolar dos últimos 36 anos. Este momento é de viragem porque tornou-se evidente para todos a falência do sistema político nacional e por isso, nunca desde 1974 se pôs tudo em causa como agora, desde a seriedade da classe política aos próprios fundamentos do regime.

Momentos como este são raros e valiosos porque apresentam uma oportunidade de verdadeira mudança. É por isso essencial que todos tenhamos em primeiro lugar a perseverança e imparcialidade para fazer um diagnóstico correcto e completo e em segundo lugar a imaginação e coragem para desenvolvermos e nos submetermos ao tratamento adequado.

Depois de no último post ter tentado resumir alegoricamente os últimos 37 anos, estava a pensar continuar no diagnóstico, apresentando dados estatísticos sobre o mesmo período e a minha análise - tenho passado os últimos tempos a ir frequentemente ao site da Pordata e outros. Felizmente para os leitores do blog tal não será necessário porque durante essa pesquisa descobri algo espantoso: uma reportagem sobre o momento que o país atravessa feita por um canal de televisão português, que em vez de falar sobre consequências tenta identificar causas, em vez de ficar satisfeito com explicações superficiais tenta ir ao fundo das questões e em vez de entrevistar famílias vitimizadas entrevista os decisores das várias causas identificadas. Não sei se teve algum destaque na altura em que foi transmitida porque o programa mais informativo a que tenho acesso agora na RTP Internacional é o Preço Certo. Aqui vai o link: http://www.rtp.pt/multimediahtml/progVideo.php?tvprog=27138 Isto é mais importante que todos os debates, comícios, entrevistas, comentários, sondagens, etc. juntos por isso aconselho vivamente que vejam e revejam.

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É fim da noite de Sábado algures na viragem da década de 80 para 90 e o meu amigo Marco está mais uma vez bêbedo. Estamos no anfiteatro da Pousada da Juventude da Serra da Estrela, convertido momentaneamente em discoteca. A música revolucionária dos Technotronic foi substituída pelo burburinho das pessoas enquanto o espaço se ia esvaziando. Nós continuávamos lá no entanto a gozar o espectáculo que eram as tentativas do Marco em sair do anfiteatro: Ele andava ao longo da parede sempre para a direita e dava a volta toda até ir parar ao mesmo sítio. Depois andava para a esquerda e mais uma vez dava a volta toda. O problema dele é que estava tão bêbedo que via as escadas como outra parede e por isso para ele não estava num anfiteatro mas sim num fosso sem saída.

É óbvio que ao fim de algum tempo pegámos no Marco e ajudámo-lo a sair de lá. Já quanto ao País, há 37 anos que anda ora para a esquerda ora para a direita à procura de uma saída e continua sem a encontrar. A população entreteve-se a fazer peso para um lado e para o outro, mas à medida que o tempo passa tem achado cada vez menos piada ao jogo, tem-se encostado e ficado à espera que a coisa mude. Neste momento, depois de tudo o que aconteceu recentemente, parece óbvio para a maioria que agora é que tem mesmo que mudar qualquer coisa, mas todos os apelos são no sentido contrário: a Democracia é certamente o menos mau dos sistemas políticos, numa Democracia a arma do povo é o voto, vamos todos portanto votar e ajudar o País a encontrar o rumo. Esta lógica parece inatacável mas a sensação forte de que algo não está bem não se vai embora. Haverá uma escada algures, mas a bebedeira persiste.

Tal como o Marco, o País será eventualmente ajudado pelos seus "amigos". Portugal é basicamente um atrelado que, independentemente de programas de ajuda, de empréstimos, apertares de cinto, etc., só se vai pôr realmente a andar quando os outros se mexerem e o levarem atrás através das exportações, subsídios e impacto colectivo nos mercados. Nessa altura todos se vão esquecer rapidamente do que se está a passar agora, vão-se vangloriar pelas medidas de recuperação bem sucedidas, voltam a haver aumentos, obras públicas, emprego e optimismo. Até à próxima crise claro! Se olharmos para trás, o 25 de Abril e subsequentes auxílios do FMI aconteceram durante a crise internacional do Petróleo nos anos 70, o Estado Novo foi criado durante a grande depressão de 1929 e início dos anos 30, etc. Parece então que já há algum tempo que a nossa vida é andar recostados no nosso atreladozito e só quando param de puxar é que acordamos e protestamos: "Então pá! Isto não anda porquê?!".

Quer isto então dizer que é natural sentirmos que temos que mudar qualquer coisa mas que na realidade a importância dessa mudança não é grande? Eu acho o contrário: isto quer dizer que no meio de tantas aparentes mudanças (Liberalismo, República, Ditadura, Democracia) há algo mais profundo que nunca mudou. Arranjar um motor por exemplo!

Desde há 37 anos Portugal é um país com uma população quase totalmente de classe média homogénea em que metade dela aceita acreditar (ou finge acreditar para não se chatear) que pertence a uma classe trabalhadora explorada pelos capitalistas sem escrúpulos e a outra metade aceita acreditar que é proactivo e empreendedor mas que não consegue fazer nada por causa do peso da outra metade, composta por funcionários públicos e subsídio-dependentes. Antes do 25 de Abril a população tinha o Fado, Futebol e Fátima para se entreter, agora tem o Futebol e a Política. Eu nunca concordei na generalidade com nenhum dos partidos e por isso antes de cada eleição sou invariavelmente chutado para o maior grupo de pessoas com uma placa na testa a dizer "indeciso". Acho que há aqui um erro qualquer de comunicação persistente porque indeciso fico eu por exemplo quando vou a um restaurante e tenho dezenas de pratos à escolha, cada um melhor que o outro. Quando vou a um restaurante e só tenho 5 pratos à escolha, 2 deles que me recuso totalmente a comer, outro que desconfio que me vai dar uma crise intestinal e outros 2 que já comi tanto que nem posso ver à frente, confesso que "indeciso" não faz parte da série de palavras que me vêm à cabeça nesse momento. O mais certo é mudar de restaurante que foi aliás o que fiz!

Mas a bipolarização partidária funciona muito bem há centenas de anos em alguns países, por que não em Portugal? Nesses países é normal partidos manterem-se no governo durante 2 e 3 mandatos seguidos e alguns até se mantêm décadas. Quando se vota noutro partido é porque aconteceu algo grave. Em Portugal, desde o 25 de Abril só por 3 vezes um partido foi reeleito para um segundo mandato e só 4 governos conseguiram acabar os 4 anos da legislatura. Noutros países é normal existirem governos de coligação ou de maioria relativa mas em Portugal ambos os casos são sempre instáveis: só uma maioria absoluta permite uma boa governação e só um voto nesse sentido é um "voto útil". Uma maioria absoluta permite o alinhamento entre os poderes legislativo e executivo enquanto que o poder judicial, parte da comunicação social, empresas públicas com monopólio dos principais serviços prestados no País, etc. são também alinhados pela nomeação política dos seus dirigentes. Em Portugal portanto a Democracia que funciona parece ser mais uma sequência de mini-ditaduras de 4 anos.

Eu vivo num desses países em que o que seria suposto funcionar em Portugal funciona mesmo e vejo que a diferença não é a capacidade ou competência dos membros do governo. A diferença é a atitude das pessoas. Por aqui quando alguém suja alguma coisa é a pessoa que está mais perto que vem logo exigir que se limpe, quando um funcionário não desempenha bem o seu serviço todas as pessoas reclamam imediatamente, quando alguém excede o limite de velocidade, estaciona onde não deve, etc. quem vê telefona logo à polícia, etc. Quando o governo está a pensar mudar qualquer coisa existem manifestações contra e a favor. Por exemplo quando se estuda a possibilidade de pôr portagens numa autoestrada manifestam-se os que não as querem pagar mas também aqueles que não aceitam que sejam todos os contribuintes a pagar pela estrada. Em Portugal pelo contrário como cada um só vê o seu interesse imediato compete ao Estado fiscalizar tudo e como só se manifesta quem é directamente afectado por cada medida, a vida política é sempre alguém contra o governo. Esta semana é o governo contra os professores, depois o governo contra os polícias, depois contra os utentes das SCUT, depois contra os transportadores, etc. O resto dos contribuintes mantém-se perfeitamente ausente de cada discussão apesar de estar em causa aquilo que vão ter que pagar com os seus impostos. O governo pelo contrário vai acumulando desgaste e mais desgaste em todas as discussões e por isso é que só quando tem a robustez de uma ditadura temporária aguenta. Ou então deixa de governar, que é aquilo que normalmente acontece nos anos que precedem eleições como 2009 - o ano do descalabro. Eu não quero com isto dizer que quem está no governo não tem culpa, mas a diferença para os governantes de outros países não é serem menos preparados ou honestos mas sim que não estão submetidos a uma fiscalização activa pela população.

Esta argumentação justificaria agora o discurso típico do: o mal de Portugal são os portugueses, com esta gente não se faz nada, enquanto não se mudar o comportamento da população isto não vai a lado nenhum, etc. e a carga de complexo de inferioridade e de salve-se quem puder que se segue. A isto eu chamo criar uma parede onde ela não existe, porque a única coisa que não podemos mudar é exactamente a nossa cultura. As nossas características não são melhores nem piores que as dos outros (ver o post "Em Portugal...ou não!"). O que se verifica é que têm obviamente um pior desempenho num sistema de governação que foi desenvolvido para outra cultura e depois copiado por nós. Em Portugal por exemplo, todas as nossas constituições desde 1822 foram copiadas de outros países, com uma ou outra alteração. Se temos características diferentes e ainda por cima temos mais imaginação, aquilo que temos que fazer é desenvolver o nosso próprio modelo de governação e desenvolvimento. Não se transforma a parede numa saída ampla e fácil. São escadas e têm que ser subidas. Mas pelo menos é uma saída.

Mas o que implicará desenvolver um modelo de acordo com a nossa cultura? Será que pelo nosso alheamento e desinteresse pela comunidade não conseguimos viver em Democracia? Antes pelo contrário! Isto quer dizer que, ao contrário da maioria dos outros povos, nós precisamos tanto de Democracia que só quando finalmente existir uma, o País vai mostrar o seu verdadeiro potencial e deixar de ser um reboque!

Deixo o resto para um próximo post. Comecei a escrever isto no 25 de Abril e daqui a pouco só publicava depois das eleições...

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Portugalix

"Pá eu acho que já chega!" disse um dos caçadores que tinha organizado o encontro secreto. "As outras aldeias não têm nada a ver connosco, nem sequer as conhecemos, não faz sentido continuarmos a matarmo-nos só porque o velho acha que ser chefe da aldeia dele não é suficiente!". Os rostos à sua volta parcialmente obscurecidos pela noite enevoada acenavam em concordância. "É a altura de acabarmos com isto de uma vez por todas. Amanhã ao nascer do Sol pegamos nos nossos grupos de caça e vamos lá correr com ele!". Novos acenos foram desta vez acompanhados por vozes abafadas de encorajamento.

Era uma vez Portugalix - Uma história de comédia, acção e muita má governação...

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Na manhã seguinte a aldeia de Portugalix acordou bruscamente para os eventos planeados secretamente na noite anterior: alguns grupos de caçadores decidiram seguir a direcção contrária à habitual e dirigiram-se ao centro da aldeia onde tomaram a casa do Chefe de assalto, pegaram nele e decidiram logo ali que o condenavam ao exílio já que a cultura da aldeia é a de evitar qualquer violência desnecessária, seja a quem for.

Depois da surpresa inicial perante mudanças tão drásticas e inesperadas, a aldeia ergueu-se em celebração e regozijo e logo foram despachados mensageiros para as outras aldeias dando conta do sucedido e manifestando a intenção de terminar imediatamente a ocupação forçada de algumas delas. Uma nova Era ia começar em Portugalix!

No próprio dia o Esquerdix foi libertado da prisão, onde estava porque tinha sido o único a contestar abertamente o Chefe e a tentar planear a queda do seu regime. Era portanto agora visto como um líder e uma fonte de inspiração. Como nada havia sido planeado sobre o que fazer depois de derrubar o Chefe, Esquerdix seria logicamente uma ajuda fundamental já que tinha sido esse também o seu objectivo desde sempre. Gracejando, pela aldeia comentavam que pelo menos tinha tido tempo de sobra para pensar nisso enquanto esteve preso!

"Quem mandava em Portugalix era o Chefe" começou Esquerdix, "e os amigos dele eram o Capitalix que é dono das terras de onde vêm as plantas que comemos e o druida Catolix que nos tenta convencer que o Chefe tem sempre razão e que a vida ideal é trabalhar muito e comer pouco. O resto da aldeia são só camponeses que trabalham na terra do Capitalix e caçadores que vão buscar javalis à floresta. O Chefe tem estado estes anos todos a dizer que a aldeia está melhor porque produzimos muito, mas vocês têm comido melhor?" "NÃO!!!" foi a resposta em coro, "Claro que não. Porque quem tem ficado com a comida é o Capitalix que está com o celeiro cheio e vende o resto para outras aldeias!".

Ao ouvir isto, um grupo de camponeses dirigiu-se imediatamente para as terras do Capitalix, apercebendo-se ao arrombar as portas de madeira da sua casa (que era de longe a maior da aldeia) que o seu dono já tinha fugido dali, tendo ido provavelmente procurar refúgio noutras paragens. A desilusão foi imediatamente esquecida no entanto quando abriram o celeiro e verificaram que apesar de não estar cheio como disse o Esquerdix, estava ali mais comida do que alguma vez tinham sonhado. Finalmente iam chegar ao fim os anos de penúria!

Apesar dos incitamentos do Esquerdix para que a aldeia ficasse só para camponeses e caçadores, uma parte da população temeu que os deuses se vingassem se o druida Catolix também fosse escorraçado, por isso contentaram-se em tirar-lhe a propriedade da árvore sagrada, passando a pertencer a toda a aldeia. Ficou também proibido de falar de coisas não religiosas nos sermões.

Entretanto, para alegria de muitos, o Centralix voltou da aldeia para onde tinha fugido há uns tempos. Ele e o seu irmão Centrolix falavam também normalmente contra o Chefe mas sem se terem juntado ao Esquerdix a planear a sua queda. O Centrolix tinha tentado dizer ao Chefe directamente o que achava que devia mudar enquanto que o Centralix mantinha uma atitude de confronto e por isso acabou por ter que fugir quando o Chefe perdeu a paciência e observou que o Esquerdix estava a sentir-se muito solitário na prisão.


Assim que chegou o Centralix, ele e o Centrolix, secundados discretamente pelo Direitix, que era um camponês que tinha ficado na aldeia apesar de alguns dizerem que era amigo do Capitalix e que tinha sido favorecido por isso, começaram a pedir para a população da aldeia se reunir e decidir quem deveria agora governar para que se pudesse começar já a melhorar a vida de todos. No entanto os caçadores que dirigiam agora a aldeia estavam mais interessados em continuar a seguir os conselhos do Esquerdix que estavam a trazer finalmente o produto de tantos anos de trabalho árduo a quem de direito.

As terras do Capitalix eram agora de toda a aldeia e todos podiam trabalhar nelas para recolher o seu sustento. Esquerdix observou que a dimensão das terras e da reserva de alimentos no celeiro eram tão grandes que se podia trazer uma boa parte dos camponeses e caçadores para fazer outras coisas pela aldeia: dedicarem-se exclusivamente a ensinar como caçar, a curar feridas, a arranjar as casas, a fazer os instrumentos necessários, roupas, etc. Como estas pessoas iam deixar de poder recolher a sua comida era preciso também que os camponeses e caçadores passassem a entregar um quinto daquilo que produziam para assegurar o seu alimento. Para que todos recebessem aquilo a que tinham direito e se fizessem ouvir na aldeia sem terem que abandonar o campo ou a floresta, Esquerdix escolheu também o seu amigo Sindicalix para falar com todos e representá-los quando fosse necessário. Claro que para cumprir a sua nova função, também Sindicalix teve que deixar de trabalhar. Para conseguir contactar com todas estas pessoas, Esquerdix viu-se também na necessidade de converter camponeses e caçadores em mensageiros que estivessem permanentemente a trazer e enviar mensagens.

Enquanto isso a maior parte da população começava a dar razão ao Centralix, Centrolix e Direitix e não percebia porque é que o grupo de caçadores e o Esquerdix estavam a demorar tanto tempo a tomar a iniciativa de reunir toda a aldeia para decidirem quem passaria a governar. Com medo que o Esquerdix gostasse demasiado das suas novas funções e se tornasse um novo Chefe, resolveram reunir-se na aldeia e forçar o Esquerdix e o grupo de caçadores a juntarem-se a eles para que uma decisão fosse tomada de imediato. Compreendendo que não tinha outra solução, Esquerdix apressou-se a clarificar que sempre tinha sido essa a sua intenção e que achava uma excelente ideia reunirem-se todos nesse momento.

Tal como esperado, de entre a população da aldeia, quem se candidatou para governar até à próxima reunião foram o Esquerdix, o Centralix, o Centrolix e o Direitix. O Esquerdix ainda era admirado e visto como um herói mas a maioria tinha medo que ele se tornasse um novo Chefe. O Direitix era visto como alguém demasiado próximo do Capitalix e portanto do Chefe. O Centralix e o Centrolix tinham estado contra o Chefe, não eram tão radicais contra o Catolix nem pareciam ter vontade de ficar para sempre a governar, por isso pareciam ser as melhores opções. Conheciam também como funcionavam outras aldeias e por isso tinham muitas ideias para melhorar a vida de todos. A maioria da população votou neles mas nenhum conseguiu pelo menos metade dos votos. Como eram irmãos resolveram governar os dois juntos o que foi visto como uma boa solução por todos.

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Cheios de ideias para a aldeia, os novos governadores quiseram logo ir falar com as pessoas que Esquerdix tinha escolhido para tratarem desta e daquela função de forma a explicarem o que tinham pensado. Muitos, no entanto, eram amigos pessoais ou admiradores de Esquerdix, por isso não concordavam com as mudanças propostas por Centralix e Centrolix. Depois de esperarem algum tempo que mudassem de opinião,os irmãos perceberam que uns resistentes continuavam a não cumprir as suas instruções ou a fazê-lo mal ou lentamente. Decidiram por isso pedir-lhes que voltassem para as suas anteriores funções de camponeses ou caçadores e substituí-los por quem aceitasse cumprir as instruções. No entanto como as novas funções eram melhores que o trabalho duro no campo ou na floresta, os resistentes decidiram ir queixar-se ao Esquerdix e ao Sindicalix que começou imediatamente a correr pela aldeia a gritar que os dois governantes estavam a ameaçar os direitos de todos os trabalhadores, o que criou um grande alvoroço.

Ao perceber o que estava a acontecer, Centralix e Centrolix apressaram-se a acalmar os resistentes, garantindo-lhes que podiam continuar na função actual. Tiveram claro que ir logo depois buscar mais caçadores e camponeses para fazerem o trabalho que tinha deixado de ser feito, assegurando-se que desta vez eram apoiantes seus para não aumentar simplesmente o número de resistentes. Apercebendo-se que assim a comida que recebiam dos caçadores e camponeses não ia chegar para todos, resolveram passar a pedir um quarto da comida produzida.

Resolvido esse problema e com a aldeia a funcionar como achavam melhor, Centralix e Centrolix saíram para os campos e floresta para ver o que também ali podia ser feito. Os grupos de caçadores perseguiam os javalis com as suas mocas, os grupos de camponeses colhiam plantas e raízes. Tudo parecia estar a acontecer da mesma forma de sempre com a diferença que agora todos estavam mais alegres, sorrindo e cantando, a fazer o seu trabalho para si e para a aldeia e não para o Capitalix. Os dois irmãos tiraram conforto dessa visão e estavam a regressar quando repararam que uma grande parte dos campos não tinha aparentemente nada a crescer. Era normal uma parte ter só sementes mas não uma assim tão grande. Resolveram então perguntar o que se estava a passar. "Boa tarde. Reparámos que não se vêem plantas numa grande parte dos campos. Qual é a razão para isso?" "Boa tarde. Então, aqueles campos já foram colhidos." "Já foram colhidos? Mas não voltaram a semear nada?" "Pois...é que agora nós levamos aquilo que colhemos. Se perdesse o meu tempo a semear, os outros levavam para casa comida e eu não!" "Então mas como é que funcionava antes?" "Antes tinha que trabalhar mais e levava para casa uma miséria!" "Sim, eu sei, mas que trabalhos é que faziam nas terras?" "Antes íamos fazendo o que o Capitalix dizia." "Sim, eu sei! Mas isso incluía depois de colher, semear não era?" "Claro, senão deixávamos de ter plantas para colher!" "Então porque é que não estão a semear agora?!" "Porque agora nós levamos para casa aquilo que colhemos e..." "Ok, ok, já percebemos!".

Assustados com o que isto implicava, Centralix e Centrolix correram para o celeiro enquanto comentavam entre si que pelo menos ainda tinham lá comida suficiente para ir alimentando a população enquanto voltavam a semear os campos. Chegados lá verificaram no entanto horrorizados que o celeiro estava vazio. "Boa tarde, o senhor foi escolhido para tomar conta do celeiro não foi?" "Sim senhor." "Então porque é que o celeiro está vazio?!" "Porque é que está vazio? Porque o Capitalix já não é dono dele, claro!" "Mas o que é que isso tem a ver com estar vazio?" "Então, o Capitalix é que fechava a comida toda no celeiro e pagava-nos uma miséria! Quando ele fugiu, a comida do celeiro passou a ser de todos." "Isso é verdade mas porque é que a levaram toda?" "Depois de tanto tempo a trabalhar muito e comer pouco, merecíamos finalmente beneficiar do proveito do nosso trabalho ou não?" "Sim, mas..." "Pronto, como estava aqui esta comida toda não foi preciso ir colher mais durante algum tempo. Todos fomos levando comida para casa e o Esquerdix e os caçadores sabiam porque também vieram cá com amigos buscar muita comida." "Pois...já percebemos. Obrigado...".

Afinal o passeio já não estava a ser assim tão bom como parecia inicialmente. Centralix e Centrolix, em pânico com o que tinham descoberto, decidiram percorrer todos os terrenos à volta da aldeia para perceber quanto tempo ia durar a comida que ainda restava. Podiam contar com os javalis que os caçadores traziam da floresta mas nunca seriam suficientes para todos. Chegando à conclusão que não demoraria muito tempo até a aldeia ficar sem comida, decidiram rapidamente que enquanto o Centrolix se dedicaria a organizar as coisas para Portugalix voltar a produzir comida suficiente, o Centralix iria visitar as outras aldeias por onde tinha estado na tentativa de arranjar comida emprestada para alimentar a população até a produção recuperar.


Na aldeia, Centrolix meteu mãos à obra: organizou os camponeses de forma a que fossem por turnos semeando os campos agora vazios enquanto que os que colhiam passaram a ter que racionar os alimentos em vez de levar tudo o que queriam para casa. Isto não foi obviamente bem aceite e quando os camponeses percebiam que ninguém estava a ver, voltavam a levar tudo o que podiam. Centrolix acabou por pedir ajuda ao Direitix que assim pôde matar saudades dos tempos em que também vigiava os campos para o Capitalix.

Entretanto o Centralix foi arranjando quem lhe emprestasse comida pelas outras aldeias. Ele garantiu que era só uma situação temporária e que daí a algum tempo iriam devolver a comida toda e mais alguma para compensar. Não foi difícil convencer os seus amigos nas outras aldeias disso: o Chefe tinha deixado Portugalix num estado lastimável e só agora é que ele e o seu irmão estavam a começar a tratar dos problemas mas que por isso mesmo, tudo iria mudar em breve.

Quando Centralix voltou à aldeia com um carregamento de alimentos e garantias de que outros se seguiriam, percebeu que tinha chegado na altura certa: os camponeses já não estavam a obedecer ao Centrolix e não só levavam alimentos quando ninguém via como também se recusavam a semear se a quantidade de comida que cabia a cada um não fosse aumentada. Tal como o Sindicalix lhes tinha dito, esse era agora um direito adquirido deles!

Com o novo aumento de comida disponível apaziguaram-se os ânimos, todos puderam voltar a levar mais comida para casa e voltaram-se também a semear os campos. Centralix e Centrolix tentavam diminuir a quantidade de alimentos que eram comidos mas paravam quando começavam a ouvir o Sindicalix, com medo que os camponeses deixassem de semear. Acima de tudo não se podia parar de semear!

Aquilo que não ia sendo comido era enviado para as outras aldeias como pagamento pelos alimentos que tinham recebido mas começou a ficar claro que não era suficiente para pagar a dívida toda. Centralix lembrou-se de pedir comida a umas aldeias para enviar para outras como pagamento mas depressa isso se tornou evidente e os seus amigos começaram a exigir ir a Portugalix para verem o que estava a acontecer antes de emprestarem mais comida.

Chegados à aldeia os amigos de Centralix pediram-lhe primeiro para falarem com os donos das terras para perceberem porque é que a produção estava tão em baixo. "Pois, na verdade os donos somos todos nós." "Como dono ser nós? O que querer dizer?" "O antigo dono fugiu e as terras passaram a ser da aldeia." "Então não haver dono!" "Não, os donos somos..." "Não haver dono! Não dono só querer comer! Só dono querer guardar e vender!" "Nós também queremos guardar! Temos um celeiro e a comida que sobra vai para lá!" "Haver comida em celeiro?" "Bem...neste momento exacto não, mas..." "Sem dono nós não emprestar comida.". Apesar das tentativas de Centralix em convencer os seus amigos, teve que enfrentar a realidade de que teria que arranjar novos donos para as terras se quisesse mais comida emprestada.

Ao discutirem o problema da propriedade dos campos, os dois irmãos chegaram à conclusão que o melhor era dividirem as terras em bocados e venderem cada um por comida. Assim arranjariam muitos donos em vez de um novo Capitalix e comida suficiente para substituir os empréstimos durante algum tempo. Foi difícil convencer o resto da aldeia, até porque o Esquerdix insistia que isso seria voltar ao tempo do Chefe, mas o argumento de que acabariam por ficar todos sem comida se não fizessem nada acabou por ser forte o suficiente.

As terras foram então divididas em muitos bocados com tamanhos parecidos e postas à venda. Como a aldeia tinha vivido um período em que todos partilhavam a comida, ninguém a tinha agora em quantidade suficiente para comprar um dos bocados. A excepção foram os camponeses que tinham aproveitado as alturas em que o celeiro tinha comida ou em que tinham chegado os carregamentos de outras aldeias para levarem às escondidas uma boa parte para casa e também aqueles que tinham conseguido enganar o Centrolix e fazer a mesma coisa quando todos deviam estar em contenção.

Estes camponeses tinham comida guardada suficiente para comprar um terço dos terrenos o que era pouco, na opinião dos governantes. Foram então a outras aldeias tentar convencer pessoas a virem comprar terras e morar para Portugalix. Não vieram muitas mas foram as suficientes para outro terço ser comprado. Centralix e Centrolix resignaram-se com a ideia de que o outro terço continuaria mesmo a ser da aldeia. Dois terços das terras passarem a ter dono já é uma mudança muito grande e de certeza que os amigos do Centralix iriam ficar satisfeitos e voltar a emprestar comida. De qualquer forma esse terço viria a diminuir no futuro com bocados a passarem a ter novos donos, curiosamente sempre pessoas próximas de pelo menos um dos dois irmãos, sem que se percebesse bem que quantidade de comida tinha sido paga em troca.

O que é certo é que a produção de facto aumentou. A maior parte dos camponeses não tinha tido a "sorte" de ter comida suficiente para comprar terras e teve por isso que se sujeitar a voltar a trabalhar em terra alheia e a levar para casa o que fosse combinado. De qualquer forma com muitos proprietários, cada um a oferecer condições diferentes e o Sindicalix sempre atento a qualquer situação de exploração dos camponeses, ninguém tinha realmente grande razão para se queixar. Como a aldeia já conseguia pagar melhor, os amigos do Centralix voltaram também a emprestar comida. Centralix e Centrolix sabiam que se tentassem a sério podiam conseguir pagar os empréstimos todos das outras aldeias mas para quê chatear a população com sacrifícios se a necessidade não era assim tão grande?

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Entretanto os dois irmãos foram sempre sendo escolhidos como governantes nas reuniões da aldeia. O Esquerdix culpava-os e aos "novos Capitalix" de todos os males de Portugalix mas era levado cada vez menos a sério a não ser pelo Sindicalix e o resto dos seus amigos. O Direitix que defendia maior sacrifício dos camponeses e dos caçadores para conseguirem pagar os empréstimos e voltar a encher o celeiro que permanecia vazio, recebia o apoio daqueles a quem não pedia sacrifícios - os donos das terras. O Centralix e o Centrolix como sentiam cada vez mais que eram os únicos a competirem pela governação da aldeia tinham deixado de se entender como antes e daí para a frente iriam fazer questão de governar sozinhos mesmo que tivessem menos de metade da população a apoiá-los.

Ao fim de algum tempo, Centralix recebeu o convite de alguns dos seus amigos para que Portugalix se juntasse a um grupo de aldeias que tinha um acordo para facilitarem a troca de comida e de pessoas entre si, para que todas ganhassem com uma maior variedade de alimentos e de conhecimentos. Centralix ficou encantado com a ideia e logo aceitou o convite. Troca de alimentos e conhecimentos com as outras aldeias só poderia beneficiar Portugalix!

Ao começar a trocar ideias com as outras aldeias, ficou claro que Portugalix tinha muito que se desenvolver. "O quê? Caçadores usar mocas?! Nossos usar armadilhas! Nossos caçar como dez vossos!" "Armadilhas? Mas o que é isso?" "Vir à minha aldeia ver. E camponeses usar quê a lavrar? Mãos? Eheh!" "Errr...não, os camponeses usam enxadas." "Enxadas?! Nossos usar cavalos e arados!" "Arados, o que é isso?" "São...vir ver!". Aparentemente durante o longo governo do Chefe a aldeia ficou parada no tempo enquanto as outras se desenvolviam. Agora estava na altura de recuperar e as outras aldeias até se dispunham a ajudar, porque queriam que Portugalix fosse capaz de produzir em quantidade suficiente para pagar os empréstimos e para poder comprar comida das outras aldeias e também para que todos beneficiassem dos tipos de alimentos que só se produziam lá. "Nós emprestar para caçadores comprar armadilhas e camponeses comprar cavalos e arados!" "Muito obrigado! Vamos já pôr mãos à obra para modernizar a aldeia!"

Em Portugalix todos lançaram vivas pela nova comida que estava a ser distribuída. O governador explicou rapidamente que ela se destinava a ser usada para comprar novas ferramentas mas não se demorou muito no tema porque ele próprio não tinha percebido bem como funcionavam e de qualquer forma preferia salientar que tinha sido ele a conseguir trazer toda aquela ajuda. "Percebeste o que ele disse quando nos deu a comida?" "Acho que é suposto comprarmos matilhas com isto." "Matilhas? Mas isso não faz sentido nenhum!" "Pois não mas foi o que eu percebi. Eu vou mas é guardar tudo e sempre dá para ficar uns tempos sem ter que caçar!". Noutro ponto da aldeia: "Para que é que eu vou comprar cavalos e esses arados se há tantos camponeses por aí? Se os fosse comprar depois tinha que levar com o Sindicalix a gritar que estava a deixar os camponeses sem terra nem trabalho!" "Não ligues. Estes gajos acham que as aldeias são todas iguais. Aqui sempre foram os camponeses a trabalhar o campo porque é que havia de mudar agora?" Entretanto os dois irmãos iam ficando orgulhosos de todo o investimento que estava a ser feito na produção da aldeia.

Algum tempo mais tarde o Direitix começou a alertar que nada estava a mudar e que se estava só a distribuir ao desbarato a comida que vinha emprestada das outras aldeias. Confirmando que era verdade, o irmão que estava a governar no momento tentou perceber por quê e concluiu que era resistência à mudança. Para garantir que os alimentos eram usados para investir na sua actividade e não simplesmente para comer passou então a pedir que os caçadores entregassem as suas mocas e os camponeses as enxadas em troca de receberem a comida. Certamente agora teriam que ir comprar as novas ferramentas de trabalho!

Perante isto alguns desconfiaram e decidiram deixar de receber comida, outros ficaram radiantes porque acharam que nunca mais iam ter que trabalhar e também houve alguns que de facto foram comprar as novas ferramentas, especialmente os que tinham vindo de outras aldeias para serem donos de terras. Depois da distribuição de comida a produção estava mais ou menos igual, com o aumento de produção de quem tinha comprado as novas ferramentas a ser compensado por quem tinha deixado de produzir por agora não ter nem novas nem velhas. Eventualmente tiveram que vender as terras ou abandonar as zonas de caça.


Não ficaram no entanto sem fazer nada porque entretanto as pessoas que trabalhavam na aldeia, mensageiros, etc. foram-se fartando de ver os resistentes iniciais a trabalhar muito menos que eles e a comer o mesmo e por isso acabaram por ir todos trabalhando menos. Cada vez que Centralix ou Centrolix assumia a governação já sabia por isso que tinha que arranjar mais pessoas para fazer o mesmo trabalho. Todos trabalhavam ao início até perceberem que os outros não se mexiam. Cada um dos governantes tinha tentado em certas alturas convencer uma parte das pessoas a voltarem a trabalhar nas terras ou na floresta mas contavam invariavelmente com a resistência feroz do Sindicalix que reunia sempre o apoio dos camponeses e caçadores que não percebiam porque é que os dois irmãos tinham sempre a vontade sádica de tirar o trabalho às pessoas. Ainda por cima quando tinham sempre que esperar para qualquer tipo de serviço! Se é preciso alguma coisa é aumentar o número de pessoas e não diminuir!

Como ser governante significava visitas às outras aldeias, mais comida, vendas de terrenos a amigos a preços especiais, etc. Centralix e Centrolix não esperavam por grandes manifestações para pararem imediatamente de insistir em devolver funcionários aos campos ou floresta, mesmo sabendo que a maior parte das pessoas que trabalhavam na aldeia só o faziam de forma figurada ou horizontal. Eventualmente os donos de terras, camponeses e caçadores tiveram que passar a entregar um terço da comida que produziam ou recebiam para se poder alimentar quem se tinha dedicado à causa nobre de servir a aldeia, não tendo por isso possibilidade de arranjar comida directamente.

Alguns donos de terras estavam a sentir falta dos empréstimos de comida. Não porque não tivessem comida mas porque quando lhes era entregue já pronta em vez de terem que a produzir, por um motivo qualquer difícil de explicar tinha outro sabor. Os governantes foram tendo por isso a preocupação de ir sempre perguntando pelas outras aldeias o que é que poderia justificar novos empréstimos de comida. Agora que Portugalix já tinha supostamente as mesmas técnicas de produção, responderam-lhe que a única coisa que justificaria empréstimos seria a produção de alimentos de que eles tivessem falta. Portanto se alguém comprasse um terreno e não soubesse o que plantar, receberia um empréstimo se escolhesse plantar um desses alimentos. Ao ouvirem esta informação do seu governante, os donos de terras que não tinham ainda nada cultivado escolheram imediatamente plantar esses alimentos para terem direito ao empréstimo de comida. Outros que já produziam outra coisa qualquer arrancaram alegremente a plantação para poderem também dedicar-se à cultura recomendada. Passou a ser normal a partir daí o irmão no governo ir anunciando qual era o produto mais apetecido nas outras aldeias para os donos das terras mudarem rapidamente o que lá tinham plantado e receberem novo empréstimo. Por vezes nem chegavam ao momento da colheita antes de arrancar e substituir a plantação. Para quê? A colheita tinha vindo logo ao início! Não havia nada tão rápido a dar resultados!

Enquanto isso a aldeia também estava a ser melhorada. Os dois irmãos tinham conseguido ir convencendo as outras aldeias a emprestarem comida para dar a pessoas que trabalhassem permanentemente a melhorar e aumentar as ruas da aldeia, as casas, as estradas para as terras, etc. Tinham convidado amigos para tomarem conta das obras, como é natural, para garantirem uma boa comunicação e para terem a certeza que o resultado final seria do seu agrado. Os trabalhos lá foram sendo feitos, aparentemente sem fim à vista, ora porque havia um imprevisto qualquer com que não tinham contado: "É suposto a casa ter telhado?! Nunca ninguém nos disse isso!", ou porque o governante do momento ia pedindo uns arranjos especiais à volta desta ou daquela casa ou terreno, que eram logo substituídos por outra coisa qualquer quando mudava o irmão. Isto sempre com comida a chegar por empréstimo, claro.

A aldeia também se orgulhava de ter bons curandeiros, juízes, sábios e outras pessoas que tinham ido das terras para a aldeia há mais ou menos tempo, dedicarem-se a uma função específica. Com tanto tempo de dedicação tinham atingido uma qualidade reconhecida e invejável também nas outras aldeias. Facto que quem governava não se cansava de lembrar. Claro que como precisavam de continuar a dedicar-se ao aprofundamento da sua área e se achavam acima de preocupações mundanas, eram os aprendizes que se tinham dedicado à área há menos tempo que atendiam, tratavam, ensinavam, etc. a população da aldeia, o que causava muita demora e resultados duvidosos. De qualquer forma, ninguém tinha dúvidas que com tão distintas figuras, Portugalix gozava de grande qualidade na prestação desses serviços e os governantes proclamavam que era o seu principal objectivo garantir que toda a população continuasse a beneficiar disso e que qualquer sacrifício valeria a pena para garantir que assim fosse.

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Para conseguir cumprir esse objectivo de manter toda a população a beneficiar dos vários serviços e também para pagar as obras e pagar o aumento de funcionários da aldeia e pagar os empréstimos de comida para compensar a falta de produção e para pagar outros empréstimos anteriores, etc. foi preciso outra vez aumentar a quantidade de comida que os donos de terras, camponeses e caçadores iriam ter que pagar. Desta vez passou para metade, o que foi classificado como um roubo por todos. Preocupados com a contestação, os irmãos, que já não se falavam, começaram a garantir a todos que já não iam trazer mais pessoas do campo ou da floresta para trabalhar na aldeia e que iam parar de pedir empréstimos de comida para os donos de terras e que iam diminuir a quantidade de obras.

De início estas promessas pareceram bem à população mas depois começaram a perceber que os mais novos que tinham aprendido com os sábios como fazer um trabalho qualquer na aldeia (tudo menos camponês ou caçador, claro!) já não podiam trabalhar lá porque não haviam novos lugares. A maioria dos que tentaram trabalhar no campo ou na floresta não foram bem recebidos porque quer camponeses quer caçadores não queriam ter que partilhar a produção com mais ninguém porque já estavam a ter dificuldade em dar metade à aldeia e ainda ficarem com comida suficiente para si. Os poucos que ainda pensaram formar grupos para caçar em partes entretanto abandonadas de floresta ou para trabalhar em terrenos da aldeia que ninguém estava a aproveitar acabaram por desistir depois de esperar longamente que os seus pedidos percorressem todos os funcionários responsáveis por dar uma opinião antes da decisão final ser pedida ao governante. No fim, alguns iam conseguindo trabalho como camponês ou caçador, os mais aventureiros foram para outras aldeias trabalhar, os restantes ficaram simplesmente à espera de dias melhores, aproveitando por vezes para ir aprendendo mais umas coisas com os sábios. O Esquerdix é que passou a gozar de nova popularidade já que continuava a defender que tudo devia ser da aldeia e que todos tinham o direito de ir buscar o seu alimento directamente.

Entretanto, apesar do esforço por diminuir os custos, a solução de ir pagando empréstimos de comida com comida emprestada e vice-versa, praticada durante tanto tempo e a ideia clara do Centralix e do Centrolix de que não podiam aumentar mais a quantidade de comida paga pela população produtiva, nessa altura já uma minoria, sabendo que se o fizessem arriscavam-se a ter o mesmo destino do Chefe, fazia com que os empréstimos de comida fossem cada vez mais difíceis de pagar o que começou a atrair a atenção das outras aldeias. Quando aconteceu um período de seca pouco habitual, os acontecimentos precipitaram-se. Sabendo que daí a pouco tempo iriam passar a vergonha de receber outra visita dos "amigos" para perceber o que se tinha passado, Centralix e Centrolix começaram a gritar por toda a aldeia culpando-se um ao outro do que tinha corrido mal, tentando numa fase final de desespero até empurrar um para o outro o papel de governador da aldeia, qual batata quente.

"Nós mandar comida para comprar ferramentas, nós mandar comida para plantar outra comida que nós querer, nós mandar comida para obras em aldeia! Como não ter comida? O que acontecer?!" Depois de um breve silêncio, toda a aldeia se pôs a justificar ao mesmo tempo: Os caçadores disseram que a culpa era dos dois irmãos por lhes terem tirado as mocas e por estarem a tirar metade da comida. Os camponeses culparam também os dois irmãos por tirarem metade da comida, por terem vendido as terras todas e por depois ainda terem dado comida aos donos de terras para comprarem cavalos e arados. Os donos de terras também culparam os irmãos por tirarem metade da comida e por terem-nos feito arrancar as excelentes plantações que tinham antes para passarem a ficar dependentes da comida das outras aldeias. Os funcionários da aldeia tinham muitas ideias bastante complexas, às quais tinham dedicado muitos dias de análise, para explicar o que tinha acontecido, mas todas se contradiziam entre si. O Esquerdix e o Sindicalix disseram que a culpa era dos dois irmãos, do Direitix e dos "novos Capitalix". O Direitix disse que a culpa era dos dois irmãos, do Esquerdix, do Sindicalix e de quem tinha vindo de outras aldeias. Quem tinha vindo de outras aldeias não disse nada porque estava a ir-se embora. O Centralix disse que a culpa era do Centrolix. O Centrolix disse que a culpa era do Centralix. Entretanto, enquanto isto acontecia no centro da aldeia, os javalis rebolavam felizes com as suas famílias numerosas nos terrenos há muito por cultivar que a rodeavam.