Pá eu acho que é de mau gosto vir nesta fase do campeonato com
conversas de dívida, deficit, etc. Era baseado nesse tipo de análise
que eu tinha pensado começar a fazer o diagnóstico do país mas esse
planeamento foi feito semanas antes do pedido de resgate (estou a
candidatar-me ao record do Guiness para post de blog mais tempo em
preparação) e sei que se vier agora com essa conversa corro o sério
risco de ser vilipendiado à bruta por todos os que de boa fé
iniciarem a leitura deste texto. Por outro lado não há nada que eu
possa realmente trazer de novo ao conhecimento em análise económica
e financeira dos leitores do blog, já que durante estes últimos dois
anos e tal o conhecimento da generalidade dos portugueses em
matérias económicas aumentou exponencialmente. Aliás, um exemplo
perfeito disso é o caso recente dos swaps: ainda as primeiras
notícias não tinham mais que um par de dias, os jornalistas tentavam
descobrir como se escrevia aquilo, se era um acrónimo, etc. e já
toda a gente tinha percebido perfeitamente o que se passava (que
obviamente lhes tinham ido mais uma vez ao bolso) e já exigiam que
rolassem cabeças. Assim sim. Assim dá gosto! Chega de
aproveitamentos demagógicos da ignorância da população! Agora todos
podem discutir em pé de igualdade. Ainda me lembro há uns anos (é
melhor não me tentar lembrar exactamente quantos), numa aula de
actividade bancária, estarmos a fazer um exercício sobre swaps, e
deparando com resultados contraditórios o professor ter nervosamente
despachado "tentem resolver em casa e na próxima aula corrigimos".
Que evolução! Quem te viu e quem te vê, Portugal. Acho que se
continuarmos assim, o país vai passar a liderar o nicho de turismo
de economia (não confundir com turismo económico em que também damos
cartas). Por exemplo: na Índia está tudo na miséria mas qualquer um
é mestre em matérias de espiritualidade. Até o papa se lá for, sai
do avião, entra num táxi, e quando sai do táxi já está convertido a
adorador de Brahma ou Vishnu ou Shiva. Em Portugal da mesma forma
estará tudo na miséria mas todos serão génios em matérias
económicas. Qualquer estrangeiro que entre no nosso país, mesmo com
habilitações ao nível dos nossos actuais políticos, se tiver o
hábito por exemplo de ir todos os dias almoçar a uma tasca, tem a
possibilidade de sair como sério candidato para o próximo prémio Nobel da
Economia!
Independentemente do que escrevi no parágrafo anterior, tenho que
fazer uma ressalva e uma excepção. A ressalva é que esta série de
posts não é sobre a crise que enfrentamos actualmente mas sobre a
mãe de todas as crises: o país que todos amamos, com este amor
rabugento mas inabalável, tipo casal de velhotes. A excepção é que
vou ter que incluir uma parte já escrita há mais de dois anos e
entretanto perdida e reescrita para que se perceba a escolha do
título dos posts, senão ficaria algo enigmático:
Para fazer o diagnóstico do país, posso começar por dizer
metaforicamente que ele está quase totalmente imerso em areias
movediças. Eu garanto que não queria começar isto logo com uma
imagem catastrofista mas para já o mais importante é ser facilmente
visualizável e "impressiva" (usando um inglesismo da moda para verem
que apesar do estilo de escrita torpe tenho as qualidades
necessárias para enviar textos para a imprensa portuguesa) e não me
consegui lembrar de exemplo melhor.
Continuando: Portugal (podem imaginar um Zé Povinho) está portanto
parcialmente imerso em areias movediças, mas olhando à sua volta
verifica que todos os outros países também o estão - uns mais,
outros menos, uns pelos tornozelos, outros completamente
mergulhados, mas não há ninguém que esteja fora. Alguns podiam se
quisessem mas não querem, talvez por causa das propriedades
dermatológicas das areias. Estes são os países emergentes, ou como
se diz agora: "os que têm dinheiro para nos ajudar". Outros países,
com graus variáveis de imersão, mesmo querendo não conseguiriam sair
das areias e por regra estão a afundar lentamente. Este grupo, no
qual está Portugal, é o dos países imergentes, ou como gostamos mais
de dizer: "desenvolvidos". Os países que estão totalmente imersos
são os países que se designavam por "subdesenvolvidos" mas a que
agora de uma forma mais politicamente correcta, mas infelizmente
menos exacta, apelidamos com um sorriso solidário nos lábios de "em
vias de desenvolvimento".
Voltando a Portugal, constatamos que, além de estar literalmente com
a barba de molho, com o transtorno evidente de assim não conseguir
fazer manguitos visíveis, esse estado de imersão agrava-se
continuamente, ou seja está a afundar-se cada vez mais. Constatamos
ainda que além de estar quase totalmente imerso e de estar
continuamente a imergir, a velocidade dessa imersão é crescente
porque Portugal se mexe freneticamente, questionando-se os outros
países se será assim afinal que se dança o fado ou se se trata do
efeito do consumo excessivo do bom vinho português.
E agora começo a ouvir exclamações: "Mas este gajo disse que ia ser
mais claro e directo e sai-se com isto?!" Calma. Agora que a
visualização criada já tem a "resiliência" (pimba! Já estou a chegar
ao nível de um colunista de jornal económico) necessária para servir
de âncora aos próximos posts, passo a explicar: as areias movediças
são a dívida do país, o afundamento é o deficit (da balança de
pagamentos, não o do orçamento de estado) e o aceleramento desse
afundamento é o nosso comportamento, atitude, decisões, governação,
etc. Portanto a conclusão em versão curta é que a dívida não é por
si só um problema: a informação fundamental para os credores não é a
quantidade de dívida mas a capacidade de a ir pagando, quer o
assunto sejam as dívidas do país ou o nosso crédito à habitação;
essa capacidade de ir pagando é dada pelo deficit: se há deficit
quer dizer que perdemos dinheiro e se perdemos dinheiro não podemos
pagar dívida nenhuma. Pelo contrário, temos até que criar novas
dívidas; haver ou não haver deficit é decidido por uma quantidade
enorme de factores a que vou chamar comportamento. Talvez mais
correcto seja dizer que é a combinação do comportamento actual e os
efeitos actuais de comportamentos passados. Continua a ser uma
grande simplificação mas o importante é dar o ênfase à
responsabilização própria e não alheia (tal como se gastarmos mais
dinheiro que o valor do nosso salário, podemos culpar meio mundo a
começar sempre pelo Estado, que a verdadeira responsabilidade nunca
deixa de ser nossa).
Este diagnóstico segue uma dinâmica parecida com um episódio do dr.
House: está dr. House a mandar bocas foleiras a uma série de pessoas
entre pacientes e equipa médica, quando dá entrada no hospital uma
senhora, de seu nome Vanda Lisa Rego de Portugal, queixando-se de
alguns sintomas que o nosso maior ídolo das séries
reais-porque-mostram-coisas-nojentas considera banais. É enviada
prontamente para casa com uma recomendação para descansar e uma
série de observações mais ou menos desagradáveis sobre a sua forma
de vestir, a sua vida amorosa, etc. A paciente segue as instruções,
mas enquanto está a preparar o jantar desmaia subitamente e é levada
de urgência novamente para o hospital. Depois de alguns testes, de
umas conversas novamente não muito edificantes e de ficarmos a
conhecer um drama pessoal de alguém da equipa médica, conclui-se que
afinal a doente padece de um problema grave mas que é explicado por
uma epidemia causada por uma bactéria particularmente agressiva mas
cujo tratamento já foi determinado pelas autoridades médicas
internacionais e que passa por tomar um certo antibiótico durante
aproximadamente dois anos. A equipa inicia prontamente a
administração do fármaco e tudo corre bem até que, em vésperas de
ser dada alta, e exactamente durante uma conversa íntima, que até
está relacionada com o tal drama pessoal da pessoa da equipa médica,
a paciente tem uma série de espasmos e entra em paragem
cardio-respiratória! Dr. House percebe finalmente que está aqui um
desafio à sua altura e dedica-se ao caso da sra Rego de Portugal a
fundo pelo que, depois de se embebedar e ofender umas quantas
personagens do sexo oposto, conclui finalmente tratar-se de um
problema genético raríssimo, que ameaça transformar o cérebro da
doente em papas de sarrabulho se nada for feito na próxima hora.
Feita essa descoberta e depois de enviar um rápido SMS ao seu amigo
Hannibal Lecter a informar que hoje talvez leve jantar, ordena à sua
equipa que se ponha imediatamente em campo para localizar um dador
de um certo líquido constituinte do plasma sanguíneo designado nos
meios científicos por liquido $, recordando-os que só alguém que
tenha abundância desse líquido no seu plasma pode ser dador.
Felizmente a extracção de pequenas quantidades não põe em perigo a
saúde de quem cumpre esse nobre gesto, causando apenas, entre outros
efeitos secundários, um desarranjo geral, mudança de humores, maus
fígados e dor de cotovelo. Localizados alguns dadores e feita a
primeira transfusão de líquido $ exactamente quando o cronómetro
para as papas chegou a 0, o estado de saúde da paciente estabiliza
por fim, para gáudio de todos que abrem prontamente uma garrafa de
bom champanhe americano, enquanto dr. House a um canto manuseia
nervosamente o telemóvel, por qualquer razão que não quis explicar.
No final do episódio surgem médico e paciente, já recuperada dos
seus sentidos, a discutir as alternativas de tratamento futuro: como
já foi referido o problema é raro, e por isso não há certezas, mas
dr. House acredita que se poderá reiniciar a produção de líquido $
no organismo, se a sra Portugal passar a cumprir um regime ascético
de pão e água q.b. e muita oração a nossa senhora de Fátima, por
tempo indefinido. Por outro lado existe sempre a hipótese de nada
fazer, fingindo ou não que algo está a ser feito, e continuar a
depender de transfusões regulares de líquido $, assumindo que pode
contar eternamente com a boa vontade dos dadores, já que não existe
um sistema organizado de recolha para este, como existe para outros
fluidos internos. Curiosamente, o episódio termina antes de
conhecermos a decisão, como que por generosidade nos dessem a
hipótese de escolher o nosso próprio fim: pão, água e fé na virgem,
ou transfusões e fé nos dadores, que opção será melhor para Vanda
Lisa R. Portugal?
Como foi dito, o problema da senhora Vanda Lisa é genético, e como
tal tem afectado membros da sua família de poucas em poucas
gerações, pelo que durante a história do nosso país existem diversos
episódios em que há um Portugal a decidir se há-de explorar-se a si
próprio ou a outrem. Por exemplo, ainda recentemente, houve um
Portugal a viver a pão, água e oração, segundo os conselhos de um
dr. Salazar que, de tão competente conseguiu convencer o seu
paciente, não só a seguir esse regime, mas também a acreditar
piamente que essa era a forma mais correcta de se viver,
independentemente do estado de saúde. Para isso utilizou métodos
diversos, de forma imaginativa. Para demonstrar a sua eficácia basta
ver que ainda hoje, descendentes do Portugal da época continuam
influenciados por uma série desses métodos. Continuam por exemplo a
cantar alegremente: "No conforto pobrezinho do meu lar, / há fartura de carinho. / e a cortina da janela é o luar, / mais o sol que bate nela... / Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar / uma existência singela... / É só amor, pão e vinho / e um caldo verde, verdinho / a fumegar na tigela.", e a acreditar que "pobrezinho" e "singela" são adjectivos positivos, enquanto que por exemplo "ambicioso", como todos sabemos, é negativo.Talvez seja um médico destes que a
actual Portugal precise para aceitar pacificamente a vida
ascética, mas não desesperem porque se se continuar a adiar uma
decisão para resolver o problema, é cada vez mais provável que um se apresente.
Antes desse recente membro da família, existiram outros Portugais
que, aproveitando os muitos recursos que na altura detinham, ao
contrário da pobrezinha sra Vanda Lisa que tem que depender da boa
vontade de outros, arrebanhavam dadores convencidos rapidamente a
voluntariarem-se. Fizeram-no em África, no Brasil, na Ásia, e graças
a isso puderam continuar a levar uma existência pouco singela.
Outro houve que achou que conseguia arranjar voluntários em
Marrocos e acabou a ameaça das papas de sarrabulho por se cumprir.
E tão boas deviam estar que nunca mais o devolveram.
Mas afinal o que está na origem deste problema genético? E será
que a família Portugal está eternamente condenada a ter
que optar entre duas opções tão extremadas: ser asceta ou viver à
conta?
(continua)