segunda-feira, 30 de junho de 2014

Será que vivemos num mundo de egoístas?

Pá eu acho que já é um bocado cansativa...não, não é cansativa. Chata. Não...tremendamente desconcertante. No sentido de me fazer arreganhar os dentes e urrar de tanto desconcerto. Ter desarranjos intestinais psicossomáticos causados pela raiva acumulada. Pronto, digamos que não ando bem, e não tem nada a ver com a selecção. Ok, se calhar tem um bocadinho. Mas não ando bem sobretudo com esta moda actual de se ser pai ou mãe como por exemplo o Miguel Veloso é jogador da selecção: "uau, é tão bom estar aqui, é a melhor experiência da minha vida e tal". Mas na realidade estão visivelmente em gestão de esforço, a pensar nas caipirinhas que estariam a beber numa vida alternativa. O pior, é que ao contrário do Miguel Veloso - talvez isso aconteça no próximo mundial, se a tendência de queda livre se mantiver - é que a um pai ou uma mãe, é aparentemente de bom tom vir a público declarar essa sua insatisfação. É visto como uma prova de honestidade e coragem, ao nível de alguém que declara por exemplo a sua homossexualidade: "Ser pai é uma merda, ainda não percebi como é que me meti nisto. Com a frustração sou um pai de merda e tudo isto é uma merda. Mas atenção, os meus filhos são espectaculares!" "Bravo! Batam palmas! Obrigado por partilhar a sua experiência! Próximo!" "Olá a todos. Ser mãe é uma merda, o meu marido não faz um car.........., só quer ver bola, e com a exaustão sou uma mãe de merda. É óbvio no entanto que pelos meus filhos faço todos os sacrifícios de bom grado e eles merecem porque são a melhor coisa do mundo!" "Bravo! Próximo!"...

Eu quando vejo este tipo de coming out versão fralda e perdolan, avidamente difundida pela generalidade da comunicação social escrita, já para não falar dos blogs dos próprios, tento, já com os calores a subirem-me, encontrar algum sinal de lucidez nos comentários ao texto, mas sempre em vão. Aparentemente entre quem se manifesta há três filosofias quanto à paternidade: ter filhos é uma merda e por isso não tenho nenhum e aproveito a vidinha; ter filhos é uma merda mas como já tenho, agora é aguentar; ter filhos é uma merda mas é profundamente egoísta sobrepor os meus desejos pessoais ao dever moral de ter filhos. Imagino que isto está mais ou menos por ordem de modernidade de quem dá as opiniões. É óbvio que depois de ler algumas pérolas destas tento invariavelmente escrever o meu próprio comentário, interrompendo de vez em quando para soltar mais alguns urros de desconcerto, e acabo por ser informado um pouco mais tarde que o meu comentário foi rejeitado por uso de linguagem imprópria. Acho isto tremendamente injusto porque, mesmo a meio de um ataque de raiva espasmódica pauto sempre por uma linguagem cortês e refinada. Não sei por exemplo o que é que informar uma senhora, que aparentemente ganhou numa rifa o direito de escrever crónicas semanais sobre maternidade num jornal online, que aquilo a que chama marido é na realidade um Neanderthal fertilizador tem de impróprio. Eu gostaria que me avisassem se tivesse um Neanderthal em casa! Sobretudo fertilizador. Não tenho sabonetes na banheira, mas com estas coisas todo o cuidado é pouco! Não compreendo a reacção.

Ponho-me a pensar: antes as pessoas não eram assim. Tudo bem que nunca houve um momento em que se erguessem recém-nascidos aos céus com a música do Rei Leão em fundo a agradecer a bênção dos deuses, como se vivêssemos numa pandemia de infertilidade. Mas afirmar que ter filhos é um sacrifício e declarar resignadamente a sua incompetência como progenitor, com a mesma ligeireza como a Carrie Bradshaw admitia que usava o forno para guardar sapatos, ser aclamado como a maior verdade posta a nu nos nossos tempos, como um grande tabu agora destruído, é estranho e preocupante na minha opinião. Será que, tal como antes ficava bem a uma mulher que queria ser moderna declarar que não sabia cozinhar, agora fica bem dizer-se que não se sabe e/ou não gosta de ser mãe/pai? Será que nestes tempos de stress e globalização vivemos num mundo de egoístas?

Há uns dias um amigo meu estava a defender pela enésima vez a sua tese de que não faz sentido, não é honesto e no limite até é hipócrita, designar um determinado comportamento como egoísta ou como não egoísta. Diz ele que não há um único comportamento humano, um único gesto voluntário ou involuntário, que não seja para interesse próprio. Estar por isso a criar uma separação artificial entre eles de egoísmo ou generosidade não faz o mínimo sentido e só serve para enganar os outros e a nós próprios. Eu admito que concordo com esta ideia e alargo até o seu âmbito a todos os seres vivos. Talvez já tenha existido alguma célula anjo-da-guarda que não agia continuamente para o seu interesse próprio, mas o processo de selecção das espécies tratou rapidamente de a remover como defeito de produção.

Então se todos os pais sempre agiram por interesse próprio, porque é que os actuais parecem tão mais desiludidos com a experiência parental? Aqui tenho que me socorrer da minha própria experiência: tenho 3 filhos com 1, 2 e 3 anos, nem eu nem a minha mulher sabemos o que são noites mal dormidas, a não ser excepcionalmente por causa de alguma doença, não sabemos o que é apanhar uma seca a embalar ou dar comida, não conhecemos o ritual do "vai tu" "não, vai tu", trabalhamos os dois a full-time, a minha mulher acabou de tirar um mestrado e eu vou iniciar agora uma segunda licenciatura, etc. Peço desculpa, o meu objectivo não é armar-me em mete-nojo mas estou só a clarificar o contexto para a minha opinião neste assunto. Admito no entanto que há um catch. "Ahh, bem me parecia. Têm uma ama a tomar conta das crianças." Não, nunca tivemos ama a não ser num punhado de vezes para ir a concertos ou algo do género e cada uma delas foi para a creche com 9 meses. "Ok, então têm alguém da família a ajudar?" Não, mudámos de país há alguns anos e não temos família nenhuma cá. " Então qual é o catch afinal?" O catch é que, entre o momento em que decidimos ter filhos e a primeira gravidez, tivemos oito anos de preparação em que praticamente tudo foi mudado em função desse objectivo, incluindo, como já referido, o país de residência. Quando finalmente começámos a ter filhos estava já tudo tão preparado que tem sido um autêntico passeio.

Não consigo perceber as pessoas que tomam as decisões mais importantes das suas vidas de ânimo leve. Sou muitas vezes acusado de ser demasiado planeado e rígido mas não podia discordar mais: sou a única pessoa que conheço sem qualquer tipo de hábitos. Mesmo um hábito tão elementar como almoçar todos os dias me escapa se estiver ocupado com qualquer coisa e ninguém me chamar a atenção. Nem preciso dizer que não consigo criar o hábito de escrever no blog... Adoro conduzir por um caminho que não sei onde vai dar, comer algo no restaurante que nem percebi a descrição, conversar com um colega de outro país que não conheço, explorar culturas diferentes, etc. Na minha casa às vezes não há comida, outras vezes não há roupa lavada ou passada a ferro, os meus sapatos ficam verdes antes de me lembrar de os engraxar, nunca me lembro de tratar dos impostos a tempo e recebo avisos todos os anos. Definitivamente rígida é que a minha vida não é, a não ser que seja rigidamente aleatória. No entanto quando me deparo com uma decisão de ter filhos, de comprar uma casa nova, de mudar de emprego, etc. é algo que me faz sentir um peso de responsabilidade que me exige muita ponderação antes de fazer seja o que for. Às vezes parece-me que há pais que perdem mais tempo a escolher os convites para o baby-shower ou a cor para as paredes do quarto do bebé do que o que perderam (ou ganharam, talvez mais correctamente) a decidir ter um filho. "Fui um granda maluco e comprei uma casa por impulso. É mesmo a casa dos meus sonhos! --//-- Este fim-de-semana vou tentar arranjar os canos da casa de banho que rebentaram. Se calhar tem alguma coisa a ver com a infiltração na parede do quarto...comprar casa é uma merda!" "Só o conheci ontem mas já sei que é o homem da minha vida! Vamos viver juntos já a partir de amanhã! ---//--- Aquela besta não levanta o cu do sofá, cheira mal e tem o hábito estúpido de arrotar as respostas do Quem quer ser milionário! Os homens são mesmo uma merda!" "Nem percebi muito bem como, de repente nasceu o puto, e a minha vida pessoal foi pró caraças! Ser pai é uma merda!"

Ser pai não é bom porque (ou só porque) estou a assegurar a minha imortalidade genética, ou porque estou a dar o meu contributo para salvar demograficamente a população portuguesa, ou porque é moralmente e socialmente bem visto, ou porque a minha relação com a minha mulher sai beneficiada e enriquecida, ou porque fico com um plano B caso a Segurança Social dê mesmo o berro, ou porque mulheres de todas as idades olham para mim quando passo enquanto sorriem e fazem "Oooohh!", ou porque me rio mais com os meus filhos do que quando vejo um episódio do Seinfeld e fico com cãibras nas bochechas de ficar horas seguidas a sorrir, ou porque tenho o privilégio de observar a formação de três seres humanos desde as etapas mais elementares, ou por isto ou por aquilo. Ser pai é bom porque eu próprio, ignorando tudo o resto, de uma forma egoísta, ganho imenso em ser pai. Sou uma pessoa melhor, mais completa, mais realizada em ser pai. Se me apetece às vezes largar tudo e ir simplesmente para uma esplanada beber uma cerveja? Claro. Mas será que me apetece fazer disso um hábito? Por exemplo quando era miúdo, às vezes estava frustrado e apetecia-me simplesmente espernear no chão e atirar tudo pelo ar como se ainda fosse bebé. Mas o que é que tinha realmente a ganhar com isso? Deixamos de o fazer não porque recebemos uma lavagem cerebral da sociedade como alguns fazem crer mas sim porque compreendemos que é uma manifestação vazia de significado e apenas nos permite uma libertação catártica que pode ser alcançada noutra actividade qualquer. Da mesma forma, às vezes sinto-me stressado, apetece-me fazer algo sozinho ou com amigos e por vezes faço-o mesmo porque tenho essa possibilidade. No entanto preencher a minha vida com momentos desses parece-me incrivelmente vazio de relevância e de interesse. A paternidade está a ser mais um patamar da minha evolução como pessoa e, em vez de pensar nostalgicamente sobre o anterior, aguardo ansiosamente pelo próximo, o que quer que ele venha a ser.

Os pais dos nossos pais, aqueles pais que só olhavam para os filhos para dar ordens ou porrada, tinham a desculpa de não existir televisão nem contraceptivos. Tinham a desculpa de não terem tido educação nenhuma e o pensamento obscurecido por tradição e religião. Tinham a desculpa de todos naquela época verem os filhos como braços adicionais de trabalho. Que desculpa têm os pais e mães bem formados e informados de agora para se declararem alegremente uns totais incapazes em parentalidade? É moda? É corajoso e honesto declarar que ser pai é um sacrifício e uma perda pessoal?! Hilariante! $#%#/$%"# para vocês todos! Coragem é trabalhar a sério e aceitar toda a responsabilidade de tomar conta de novos seres humanos, tão importantes como nós próprios, durante a fase mais frágil das suas vidas. Honestidade é assumir sem rodeios que não estamos preparados ou ainda não estamos preparados para o fazer. Ter filhos e depois queixar-se das consequências revela falta de ambas as coisas.

Pelo mar de opiniões da treta veiculadas e de crianças mal criadas, com distúrbios alimentares, de sono, de atenção, sem resistência à frustração, com hiperactividade, obesidade, etc. decreto uma chuva de napalm sobre os pais (ir)responsáveis e peço desculpa aos órfãos. Liguem à Angelina Jolie que acho que ela ainda não adoptou ninguém este ano.

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