sexta-feira, 22 de abril de 2011

Portugalix

"Pá eu acho que já chega!" disse um dos caçadores que tinha organizado o encontro secreto. "As outras aldeias não têm nada a ver connosco, nem sequer as conhecemos, não faz sentido continuarmos a matarmo-nos só porque o velho acha que ser chefe da aldeia dele não é suficiente!". Os rostos à sua volta parcialmente obscurecidos pela noite enevoada acenavam em concordância. "É a altura de acabarmos com isto de uma vez por todas. Amanhã ao nascer do Sol pegamos nos nossos grupos de caça e vamos lá correr com ele!". Novos acenos foram desta vez acompanhados por vozes abafadas de encorajamento.

Era uma vez Portugalix - Uma história de comédia, acção e muita má governação...

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Na manhã seguinte a aldeia de Portugalix acordou bruscamente para os eventos planeados secretamente na noite anterior: alguns grupos de caçadores decidiram seguir a direcção contrária à habitual e dirigiram-se ao centro da aldeia onde tomaram a casa do Chefe de assalto, pegaram nele e decidiram logo ali que o condenavam ao exílio já que a cultura da aldeia é a de evitar qualquer violência desnecessária, seja a quem for.

Depois da surpresa inicial perante mudanças tão drásticas e inesperadas, a aldeia ergueu-se em celebração e regozijo e logo foram despachados mensageiros para as outras aldeias dando conta do sucedido e manifestando a intenção de terminar imediatamente a ocupação forçada de algumas delas. Uma nova Era ia começar em Portugalix!

No próprio dia o Esquerdix foi libertado da prisão, onde estava porque tinha sido o único a contestar abertamente o Chefe e a tentar planear a queda do seu regime. Era portanto agora visto como um líder e uma fonte de inspiração. Como nada havia sido planeado sobre o que fazer depois de derrubar o Chefe, Esquerdix seria logicamente uma ajuda fundamental já que tinha sido esse também o seu objectivo desde sempre. Gracejando, pela aldeia comentavam que pelo menos tinha tido tempo de sobra para pensar nisso enquanto esteve preso!

"Quem mandava em Portugalix era o Chefe" começou Esquerdix, "e os amigos dele eram o Capitalix que é dono das terras de onde vêm as plantas que comemos e o druida Catolix que nos tenta convencer que o Chefe tem sempre razão e que a vida ideal é trabalhar muito e comer pouco. O resto da aldeia são só camponeses que trabalham na terra do Capitalix e caçadores que vão buscar javalis à floresta. O Chefe tem estado estes anos todos a dizer que a aldeia está melhor porque produzimos muito, mas vocês têm comido melhor?" "NÃO!!!" foi a resposta em coro, "Claro que não. Porque quem tem ficado com a comida é o Capitalix que está com o celeiro cheio e vende o resto para outras aldeias!".

Ao ouvir isto, um grupo de camponeses dirigiu-se imediatamente para as terras do Capitalix, apercebendo-se ao arrombar as portas de madeira da sua casa (que era de longe a maior da aldeia) que o seu dono já tinha fugido dali, tendo ido provavelmente procurar refúgio noutras paragens. A desilusão foi imediatamente esquecida no entanto quando abriram o celeiro e verificaram que apesar de não estar cheio como disse o Esquerdix, estava ali mais comida do que alguma vez tinham sonhado. Finalmente iam chegar ao fim os anos de penúria!

Apesar dos incitamentos do Esquerdix para que a aldeia ficasse só para camponeses e caçadores, uma parte da população temeu que os deuses se vingassem se o druida Catolix também fosse escorraçado, por isso contentaram-se em tirar-lhe a propriedade da árvore sagrada, passando a pertencer a toda a aldeia. Ficou também proibido de falar de coisas não religiosas nos sermões.

Entretanto, para alegria de muitos, o Centralix voltou da aldeia para onde tinha fugido há uns tempos. Ele e o seu irmão Centrolix falavam também normalmente contra o Chefe mas sem se terem juntado ao Esquerdix a planear a sua queda. O Centrolix tinha tentado dizer ao Chefe directamente o que achava que devia mudar enquanto que o Centralix mantinha uma atitude de confronto e por isso acabou por ter que fugir quando o Chefe perdeu a paciência e observou que o Esquerdix estava a sentir-se muito solitário na prisão.


Assim que chegou o Centralix, ele e o Centrolix, secundados discretamente pelo Direitix, que era um camponês que tinha ficado na aldeia apesar de alguns dizerem que era amigo do Capitalix e que tinha sido favorecido por isso, começaram a pedir para a população da aldeia se reunir e decidir quem deveria agora governar para que se pudesse começar já a melhorar a vida de todos. No entanto os caçadores que dirigiam agora a aldeia estavam mais interessados em continuar a seguir os conselhos do Esquerdix que estavam a trazer finalmente o produto de tantos anos de trabalho árduo a quem de direito.

As terras do Capitalix eram agora de toda a aldeia e todos podiam trabalhar nelas para recolher o seu sustento. Esquerdix observou que a dimensão das terras e da reserva de alimentos no celeiro eram tão grandes que se podia trazer uma boa parte dos camponeses e caçadores para fazer outras coisas pela aldeia: dedicarem-se exclusivamente a ensinar como caçar, a curar feridas, a arranjar as casas, a fazer os instrumentos necessários, roupas, etc. Como estas pessoas iam deixar de poder recolher a sua comida era preciso também que os camponeses e caçadores passassem a entregar um quinto daquilo que produziam para assegurar o seu alimento. Para que todos recebessem aquilo a que tinham direito e se fizessem ouvir na aldeia sem terem que abandonar o campo ou a floresta, Esquerdix escolheu também o seu amigo Sindicalix para falar com todos e representá-los quando fosse necessário. Claro que para cumprir a sua nova função, também Sindicalix teve que deixar de trabalhar. Para conseguir contactar com todas estas pessoas, Esquerdix viu-se também na necessidade de converter camponeses e caçadores em mensageiros que estivessem permanentemente a trazer e enviar mensagens.

Enquanto isso a maior parte da população começava a dar razão ao Centralix, Centrolix e Direitix e não percebia porque é que o grupo de caçadores e o Esquerdix estavam a demorar tanto tempo a tomar a iniciativa de reunir toda a aldeia para decidirem quem passaria a governar. Com medo que o Esquerdix gostasse demasiado das suas novas funções e se tornasse um novo Chefe, resolveram reunir-se na aldeia e forçar o Esquerdix e o grupo de caçadores a juntarem-se a eles para que uma decisão fosse tomada de imediato. Compreendendo que não tinha outra solução, Esquerdix apressou-se a clarificar que sempre tinha sido essa a sua intenção e que achava uma excelente ideia reunirem-se todos nesse momento.

Tal como esperado, de entre a população da aldeia, quem se candidatou para governar até à próxima reunião foram o Esquerdix, o Centralix, o Centrolix e o Direitix. O Esquerdix ainda era admirado e visto como um herói mas a maioria tinha medo que ele se tornasse um novo Chefe. O Direitix era visto como alguém demasiado próximo do Capitalix e portanto do Chefe. O Centralix e o Centrolix tinham estado contra o Chefe, não eram tão radicais contra o Catolix nem pareciam ter vontade de ficar para sempre a governar, por isso pareciam ser as melhores opções. Conheciam também como funcionavam outras aldeias e por isso tinham muitas ideias para melhorar a vida de todos. A maioria da população votou neles mas nenhum conseguiu pelo menos metade dos votos. Como eram irmãos resolveram governar os dois juntos o que foi visto como uma boa solução por todos.

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Cheios de ideias para a aldeia, os novos governadores quiseram logo ir falar com as pessoas que Esquerdix tinha escolhido para tratarem desta e daquela função de forma a explicarem o que tinham pensado. Muitos, no entanto, eram amigos pessoais ou admiradores de Esquerdix, por isso não concordavam com as mudanças propostas por Centralix e Centrolix. Depois de esperarem algum tempo que mudassem de opinião,os irmãos perceberam que uns resistentes continuavam a não cumprir as suas instruções ou a fazê-lo mal ou lentamente. Decidiram por isso pedir-lhes que voltassem para as suas anteriores funções de camponeses ou caçadores e substituí-los por quem aceitasse cumprir as instruções. No entanto como as novas funções eram melhores que o trabalho duro no campo ou na floresta, os resistentes decidiram ir queixar-se ao Esquerdix e ao Sindicalix que começou imediatamente a correr pela aldeia a gritar que os dois governantes estavam a ameaçar os direitos de todos os trabalhadores, o que criou um grande alvoroço.

Ao perceber o que estava a acontecer, Centralix e Centrolix apressaram-se a acalmar os resistentes, garantindo-lhes que podiam continuar na função actual. Tiveram claro que ir logo depois buscar mais caçadores e camponeses para fazerem o trabalho que tinha deixado de ser feito, assegurando-se que desta vez eram apoiantes seus para não aumentar simplesmente o número de resistentes. Apercebendo-se que assim a comida que recebiam dos caçadores e camponeses não ia chegar para todos, resolveram passar a pedir um quarto da comida produzida.

Resolvido esse problema e com a aldeia a funcionar como achavam melhor, Centralix e Centrolix saíram para os campos e floresta para ver o que também ali podia ser feito. Os grupos de caçadores perseguiam os javalis com as suas mocas, os grupos de camponeses colhiam plantas e raízes. Tudo parecia estar a acontecer da mesma forma de sempre com a diferença que agora todos estavam mais alegres, sorrindo e cantando, a fazer o seu trabalho para si e para a aldeia e não para o Capitalix. Os dois irmãos tiraram conforto dessa visão e estavam a regressar quando repararam que uma grande parte dos campos não tinha aparentemente nada a crescer. Era normal uma parte ter só sementes mas não uma assim tão grande. Resolveram então perguntar o que se estava a passar. "Boa tarde. Reparámos que não se vêem plantas numa grande parte dos campos. Qual é a razão para isso?" "Boa tarde. Então, aqueles campos já foram colhidos." "Já foram colhidos? Mas não voltaram a semear nada?" "Pois...é que agora nós levamos aquilo que colhemos. Se perdesse o meu tempo a semear, os outros levavam para casa comida e eu não!" "Então mas como é que funcionava antes?" "Antes tinha que trabalhar mais e levava para casa uma miséria!" "Sim, eu sei, mas que trabalhos é que faziam nas terras?" "Antes íamos fazendo o que o Capitalix dizia." "Sim, eu sei! Mas isso incluía depois de colher, semear não era?" "Claro, senão deixávamos de ter plantas para colher!" "Então porque é que não estão a semear agora?!" "Porque agora nós levamos para casa aquilo que colhemos e..." "Ok, ok, já percebemos!".

Assustados com o que isto implicava, Centralix e Centrolix correram para o celeiro enquanto comentavam entre si que pelo menos ainda tinham lá comida suficiente para ir alimentando a população enquanto voltavam a semear os campos. Chegados lá verificaram no entanto horrorizados que o celeiro estava vazio. "Boa tarde, o senhor foi escolhido para tomar conta do celeiro não foi?" "Sim senhor." "Então porque é que o celeiro está vazio?!" "Porque é que está vazio? Porque o Capitalix já não é dono dele, claro!" "Mas o que é que isso tem a ver com estar vazio?" "Então, o Capitalix é que fechava a comida toda no celeiro e pagava-nos uma miséria! Quando ele fugiu, a comida do celeiro passou a ser de todos." "Isso é verdade mas porque é que a levaram toda?" "Depois de tanto tempo a trabalhar muito e comer pouco, merecíamos finalmente beneficiar do proveito do nosso trabalho ou não?" "Sim, mas..." "Pronto, como estava aqui esta comida toda não foi preciso ir colher mais durante algum tempo. Todos fomos levando comida para casa e o Esquerdix e os caçadores sabiam porque também vieram cá com amigos buscar muita comida." "Pois...já percebemos. Obrigado...".

Afinal o passeio já não estava a ser assim tão bom como parecia inicialmente. Centralix e Centrolix, em pânico com o que tinham descoberto, decidiram percorrer todos os terrenos à volta da aldeia para perceber quanto tempo ia durar a comida que ainda restava. Podiam contar com os javalis que os caçadores traziam da floresta mas nunca seriam suficientes para todos. Chegando à conclusão que não demoraria muito tempo até a aldeia ficar sem comida, decidiram rapidamente que enquanto o Centrolix se dedicaria a organizar as coisas para Portugalix voltar a produzir comida suficiente, o Centralix iria visitar as outras aldeias por onde tinha estado na tentativa de arranjar comida emprestada para alimentar a população até a produção recuperar.


Na aldeia, Centrolix meteu mãos à obra: organizou os camponeses de forma a que fossem por turnos semeando os campos agora vazios enquanto que os que colhiam passaram a ter que racionar os alimentos em vez de levar tudo o que queriam para casa. Isto não foi obviamente bem aceite e quando os camponeses percebiam que ninguém estava a ver, voltavam a levar tudo o que podiam. Centrolix acabou por pedir ajuda ao Direitix que assim pôde matar saudades dos tempos em que também vigiava os campos para o Capitalix.

Entretanto o Centralix foi arranjando quem lhe emprestasse comida pelas outras aldeias. Ele garantiu que era só uma situação temporária e que daí a algum tempo iriam devolver a comida toda e mais alguma para compensar. Não foi difícil convencer os seus amigos nas outras aldeias disso: o Chefe tinha deixado Portugalix num estado lastimável e só agora é que ele e o seu irmão estavam a começar a tratar dos problemas mas que por isso mesmo, tudo iria mudar em breve.

Quando Centralix voltou à aldeia com um carregamento de alimentos e garantias de que outros se seguiriam, percebeu que tinha chegado na altura certa: os camponeses já não estavam a obedecer ao Centrolix e não só levavam alimentos quando ninguém via como também se recusavam a semear se a quantidade de comida que cabia a cada um não fosse aumentada. Tal como o Sindicalix lhes tinha dito, esse era agora um direito adquirido deles!

Com o novo aumento de comida disponível apaziguaram-se os ânimos, todos puderam voltar a levar mais comida para casa e voltaram-se também a semear os campos. Centralix e Centrolix tentavam diminuir a quantidade de alimentos que eram comidos mas paravam quando começavam a ouvir o Sindicalix, com medo que os camponeses deixassem de semear. Acima de tudo não se podia parar de semear!

Aquilo que não ia sendo comido era enviado para as outras aldeias como pagamento pelos alimentos que tinham recebido mas começou a ficar claro que não era suficiente para pagar a dívida toda. Centralix lembrou-se de pedir comida a umas aldeias para enviar para outras como pagamento mas depressa isso se tornou evidente e os seus amigos começaram a exigir ir a Portugalix para verem o que estava a acontecer antes de emprestarem mais comida.

Chegados à aldeia os amigos de Centralix pediram-lhe primeiro para falarem com os donos das terras para perceberem porque é que a produção estava tão em baixo. "Pois, na verdade os donos somos todos nós." "Como dono ser nós? O que querer dizer?" "O antigo dono fugiu e as terras passaram a ser da aldeia." "Então não haver dono!" "Não, os donos somos..." "Não haver dono! Não dono só querer comer! Só dono querer guardar e vender!" "Nós também queremos guardar! Temos um celeiro e a comida que sobra vai para lá!" "Haver comida em celeiro?" "Bem...neste momento exacto não, mas..." "Sem dono nós não emprestar comida.". Apesar das tentativas de Centralix em convencer os seus amigos, teve que enfrentar a realidade de que teria que arranjar novos donos para as terras se quisesse mais comida emprestada.

Ao discutirem o problema da propriedade dos campos, os dois irmãos chegaram à conclusão que o melhor era dividirem as terras em bocados e venderem cada um por comida. Assim arranjariam muitos donos em vez de um novo Capitalix e comida suficiente para substituir os empréstimos durante algum tempo. Foi difícil convencer o resto da aldeia, até porque o Esquerdix insistia que isso seria voltar ao tempo do Chefe, mas o argumento de que acabariam por ficar todos sem comida se não fizessem nada acabou por ser forte o suficiente.

As terras foram então divididas em muitos bocados com tamanhos parecidos e postas à venda. Como a aldeia tinha vivido um período em que todos partilhavam a comida, ninguém a tinha agora em quantidade suficiente para comprar um dos bocados. A excepção foram os camponeses que tinham aproveitado as alturas em que o celeiro tinha comida ou em que tinham chegado os carregamentos de outras aldeias para levarem às escondidas uma boa parte para casa e também aqueles que tinham conseguido enganar o Centrolix e fazer a mesma coisa quando todos deviam estar em contenção.

Estes camponeses tinham comida guardada suficiente para comprar um terço dos terrenos o que era pouco, na opinião dos governantes. Foram então a outras aldeias tentar convencer pessoas a virem comprar terras e morar para Portugalix. Não vieram muitas mas foram as suficientes para outro terço ser comprado. Centralix e Centrolix resignaram-se com a ideia de que o outro terço continuaria mesmo a ser da aldeia. Dois terços das terras passarem a ter dono já é uma mudança muito grande e de certeza que os amigos do Centralix iriam ficar satisfeitos e voltar a emprestar comida. De qualquer forma esse terço viria a diminuir no futuro com bocados a passarem a ter novos donos, curiosamente sempre pessoas próximas de pelo menos um dos dois irmãos, sem que se percebesse bem que quantidade de comida tinha sido paga em troca.

O que é certo é que a produção de facto aumentou. A maior parte dos camponeses não tinha tido a "sorte" de ter comida suficiente para comprar terras e teve por isso que se sujeitar a voltar a trabalhar em terra alheia e a levar para casa o que fosse combinado. De qualquer forma com muitos proprietários, cada um a oferecer condições diferentes e o Sindicalix sempre atento a qualquer situação de exploração dos camponeses, ninguém tinha realmente grande razão para se queixar. Como a aldeia já conseguia pagar melhor, os amigos do Centralix voltaram também a emprestar comida. Centralix e Centrolix sabiam que se tentassem a sério podiam conseguir pagar os empréstimos todos das outras aldeias mas para quê chatear a população com sacrifícios se a necessidade não era assim tão grande?

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Entretanto os dois irmãos foram sempre sendo escolhidos como governantes nas reuniões da aldeia. O Esquerdix culpava-os e aos "novos Capitalix" de todos os males de Portugalix mas era levado cada vez menos a sério a não ser pelo Sindicalix e o resto dos seus amigos. O Direitix que defendia maior sacrifício dos camponeses e dos caçadores para conseguirem pagar os empréstimos e voltar a encher o celeiro que permanecia vazio, recebia o apoio daqueles a quem não pedia sacrifícios - os donos das terras. O Centralix e o Centrolix como sentiam cada vez mais que eram os únicos a competirem pela governação da aldeia tinham deixado de se entender como antes e daí para a frente iriam fazer questão de governar sozinhos mesmo que tivessem menos de metade da população a apoiá-los.

Ao fim de algum tempo, Centralix recebeu o convite de alguns dos seus amigos para que Portugalix se juntasse a um grupo de aldeias que tinha um acordo para facilitarem a troca de comida e de pessoas entre si, para que todas ganhassem com uma maior variedade de alimentos e de conhecimentos. Centralix ficou encantado com a ideia e logo aceitou o convite. Troca de alimentos e conhecimentos com as outras aldeias só poderia beneficiar Portugalix!

Ao começar a trocar ideias com as outras aldeias, ficou claro que Portugalix tinha muito que se desenvolver. "O quê? Caçadores usar mocas?! Nossos usar armadilhas! Nossos caçar como dez vossos!" "Armadilhas? Mas o que é isso?" "Vir à minha aldeia ver. E camponeses usar quê a lavrar? Mãos? Eheh!" "Errr...não, os camponeses usam enxadas." "Enxadas?! Nossos usar cavalos e arados!" "Arados, o que é isso?" "São...vir ver!". Aparentemente durante o longo governo do Chefe a aldeia ficou parada no tempo enquanto as outras se desenvolviam. Agora estava na altura de recuperar e as outras aldeias até se dispunham a ajudar, porque queriam que Portugalix fosse capaz de produzir em quantidade suficiente para pagar os empréstimos e para poder comprar comida das outras aldeias e também para que todos beneficiassem dos tipos de alimentos que só se produziam lá. "Nós emprestar para caçadores comprar armadilhas e camponeses comprar cavalos e arados!" "Muito obrigado! Vamos já pôr mãos à obra para modernizar a aldeia!"

Em Portugalix todos lançaram vivas pela nova comida que estava a ser distribuída. O governador explicou rapidamente que ela se destinava a ser usada para comprar novas ferramentas mas não se demorou muito no tema porque ele próprio não tinha percebido bem como funcionavam e de qualquer forma preferia salientar que tinha sido ele a conseguir trazer toda aquela ajuda. "Percebeste o que ele disse quando nos deu a comida?" "Acho que é suposto comprarmos matilhas com isto." "Matilhas? Mas isso não faz sentido nenhum!" "Pois não mas foi o que eu percebi. Eu vou mas é guardar tudo e sempre dá para ficar uns tempos sem ter que caçar!". Noutro ponto da aldeia: "Para que é que eu vou comprar cavalos e esses arados se há tantos camponeses por aí? Se os fosse comprar depois tinha que levar com o Sindicalix a gritar que estava a deixar os camponeses sem terra nem trabalho!" "Não ligues. Estes gajos acham que as aldeias são todas iguais. Aqui sempre foram os camponeses a trabalhar o campo porque é que havia de mudar agora?" Entretanto os dois irmãos iam ficando orgulhosos de todo o investimento que estava a ser feito na produção da aldeia.

Algum tempo mais tarde o Direitix começou a alertar que nada estava a mudar e que se estava só a distribuir ao desbarato a comida que vinha emprestada das outras aldeias. Confirmando que era verdade, o irmão que estava a governar no momento tentou perceber por quê e concluiu que era resistência à mudança. Para garantir que os alimentos eram usados para investir na sua actividade e não simplesmente para comer passou então a pedir que os caçadores entregassem as suas mocas e os camponeses as enxadas em troca de receberem a comida. Certamente agora teriam que ir comprar as novas ferramentas de trabalho!

Perante isto alguns desconfiaram e decidiram deixar de receber comida, outros ficaram radiantes porque acharam que nunca mais iam ter que trabalhar e também houve alguns que de facto foram comprar as novas ferramentas, especialmente os que tinham vindo de outras aldeias para serem donos de terras. Depois da distribuição de comida a produção estava mais ou menos igual, com o aumento de produção de quem tinha comprado as novas ferramentas a ser compensado por quem tinha deixado de produzir por agora não ter nem novas nem velhas. Eventualmente tiveram que vender as terras ou abandonar as zonas de caça.


Não ficaram no entanto sem fazer nada porque entretanto as pessoas que trabalhavam na aldeia, mensageiros, etc. foram-se fartando de ver os resistentes iniciais a trabalhar muito menos que eles e a comer o mesmo e por isso acabaram por ir todos trabalhando menos. Cada vez que Centralix ou Centrolix assumia a governação já sabia por isso que tinha que arranjar mais pessoas para fazer o mesmo trabalho. Todos trabalhavam ao início até perceberem que os outros não se mexiam. Cada um dos governantes tinha tentado em certas alturas convencer uma parte das pessoas a voltarem a trabalhar nas terras ou na floresta mas contavam invariavelmente com a resistência feroz do Sindicalix que reunia sempre o apoio dos camponeses e caçadores que não percebiam porque é que os dois irmãos tinham sempre a vontade sádica de tirar o trabalho às pessoas. Ainda por cima quando tinham sempre que esperar para qualquer tipo de serviço! Se é preciso alguma coisa é aumentar o número de pessoas e não diminuir!

Como ser governante significava visitas às outras aldeias, mais comida, vendas de terrenos a amigos a preços especiais, etc. Centralix e Centrolix não esperavam por grandes manifestações para pararem imediatamente de insistir em devolver funcionários aos campos ou floresta, mesmo sabendo que a maior parte das pessoas que trabalhavam na aldeia só o faziam de forma figurada ou horizontal. Eventualmente os donos de terras, camponeses e caçadores tiveram que passar a entregar um terço da comida que produziam ou recebiam para se poder alimentar quem se tinha dedicado à causa nobre de servir a aldeia, não tendo por isso possibilidade de arranjar comida directamente.

Alguns donos de terras estavam a sentir falta dos empréstimos de comida. Não porque não tivessem comida mas porque quando lhes era entregue já pronta em vez de terem que a produzir, por um motivo qualquer difícil de explicar tinha outro sabor. Os governantes foram tendo por isso a preocupação de ir sempre perguntando pelas outras aldeias o que é que poderia justificar novos empréstimos de comida. Agora que Portugalix já tinha supostamente as mesmas técnicas de produção, responderam-lhe que a única coisa que justificaria empréstimos seria a produção de alimentos de que eles tivessem falta. Portanto se alguém comprasse um terreno e não soubesse o que plantar, receberia um empréstimo se escolhesse plantar um desses alimentos. Ao ouvirem esta informação do seu governante, os donos de terras que não tinham ainda nada cultivado escolheram imediatamente plantar esses alimentos para terem direito ao empréstimo de comida. Outros que já produziam outra coisa qualquer arrancaram alegremente a plantação para poderem também dedicar-se à cultura recomendada. Passou a ser normal a partir daí o irmão no governo ir anunciando qual era o produto mais apetecido nas outras aldeias para os donos das terras mudarem rapidamente o que lá tinham plantado e receberem novo empréstimo. Por vezes nem chegavam ao momento da colheita antes de arrancar e substituir a plantação. Para quê? A colheita tinha vindo logo ao início! Não havia nada tão rápido a dar resultados!

Enquanto isso a aldeia também estava a ser melhorada. Os dois irmãos tinham conseguido ir convencendo as outras aldeias a emprestarem comida para dar a pessoas que trabalhassem permanentemente a melhorar e aumentar as ruas da aldeia, as casas, as estradas para as terras, etc. Tinham convidado amigos para tomarem conta das obras, como é natural, para garantirem uma boa comunicação e para terem a certeza que o resultado final seria do seu agrado. Os trabalhos lá foram sendo feitos, aparentemente sem fim à vista, ora porque havia um imprevisto qualquer com que não tinham contado: "É suposto a casa ter telhado?! Nunca ninguém nos disse isso!", ou porque o governante do momento ia pedindo uns arranjos especiais à volta desta ou daquela casa ou terreno, que eram logo substituídos por outra coisa qualquer quando mudava o irmão. Isto sempre com comida a chegar por empréstimo, claro.

A aldeia também se orgulhava de ter bons curandeiros, juízes, sábios e outras pessoas que tinham ido das terras para a aldeia há mais ou menos tempo, dedicarem-se a uma função específica. Com tanto tempo de dedicação tinham atingido uma qualidade reconhecida e invejável também nas outras aldeias. Facto que quem governava não se cansava de lembrar. Claro que como precisavam de continuar a dedicar-se ao aprofundamento da sua área e se achavam acima de preocupações mundanas, eram os aprendizes que se tinham dedicado à área há menos tempo que atendiam, tratavam, ensinavam, etc. a população da aldeia, o que causava muita demora e resultados duvidosos. De qualquer forma, ninguém tinha dúvidas que com tão distintas figuras, Portugalix gozava de grande qualidade na prestação desses serviços e os governantes proclamavam que era o seu principal objectivo garantir que toda a população continuasse a beneficiar disso e que qualquer sacrifício valeria a pena para garantir que assim fosse.

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Para conseguir cumprir esse objectivo de manter toda a população a beneficiar dos vários serviços e também para pagar as obras e pagar o aumento de funcionários da aldeia e pagar os empréstimos de comida para compensar a falta de produção e para pagar outros empréstimos anteriores, etc. foi preciso outra vez aumentar a quantidade de comida que os donos de terras, camponeses e caçadores iriam ter que pagar. Desta vez passou para metade, o que foi classificado como um roubo por todos. Preocupados com a contestação, os irmãos, que já não se falavam, começaram a garantir a todos que já não iam trazer mais pessoas do campo ou da floresta para trabalhar na aldeia e que iam parar de pedir empréstimos de comida para os donos de terras e que iam diminuir a quantidade de obras.

De início estas promessas pareceram bem à população mas depois começaram a perceber que os mais novos que tinham aprendido com os sábios como fazer um trabalho qualquer na aldeia (tudo menos camponês ou caçador, claro!) já não podiam trabalhar lá porque não haviam novos lugares. A maioria dos que tentaram trabalhar no campo ou na floresta não foram bem recebidos porque quer camponeses quer caçadores não queriam ter que partilhar a produção com mais ninguém porque já estavam a ter dificuldade em dar metade à aldeia e ainda ficarem com comida suficiente para si. Os poucos que ainda pensaram formar grupos para caçar em partes entretanto abandonadas de floresta ou para trabalhar em terrenos da aldeia que ninguém estava a aproveitar acabaram por desistir depois de esperar longamente que os seus pedidos percorressem todos os funcionários responsáveis por dar uma opinião antes da decisão final ser pedida ao governante. No fim, alguns iam conseguindo trabalho como camponês ou caçador, os mais aventureiros foram para outras aldeias trabalhar, os restantes ficaram simplesmente à espera de dias melhores, aproveitando por vezes para ir aprendendo mais umas coisas com os sábios. O Esquerdix é que passou a gozar de nova popularidade já que continuava a defender que tudo devia ser da aldeia e que todos tinham o direito de ir buscar o seu alimento directamente.

Entretanto, apesar do esforço por diminuir os custos, a solução de ir pagando empréstimos de comida com comida emprestada e vice-versa, praticada durante tanto tempo e a ideia clara do Centralix e do Centrolix de que não podiam aumentar mais a quantidade de comida paga pela população produtiva, nessa altura já uma minoria, sabendo que se o fizessem arriscavam-se a ter o mesmo destino do Chefe, fazia com que os empréstimos de comida fossem cada vez mais difíceis de pagar o que começou a atrair a atenção das outras aldeias. Quando aconteceu um período de seca pouco habitual, os acontecimentos precipitaram-se. Sabendo que daí a pouco tempo iriam passar a vergonha de receber outra visita dos "amigos" para perceber o que se tinha passado, Centralix e Centrolix começaram a gritar por toda a aldeia culpando-se um ao outro do que tinha corrido mal, tentando numa fase final de desespero até empurrar um para o outro o papel de governador da aldeia, qual batata quente.

"Nós mandar comida para comprar ferramentas, nós mandar comida para plantar outra comida que nós querer, nós mandar comida para obras em aldeia! Como não ter comida? O que acontecer?!" Depois de um breve silêncio, toda a aldeia se pôs a justificar ao mesmo tempo: Os caçadores disseram que a culpa era dos dois irmãos por lhes terem tirado as mocas e por estarem a tirar metade da comida. Os camponeses culparam também os dois irmãos por tirarem metade da comida, por terem vendido as terras todas e por depois ainda terem dado comida aos donos de terras para comprarem cavalos e arados. Os donos de terras também culparam os irmãos por tirarem metade da comida e por terem-nos feito arrancar as excelentes plantações que tinham antes para passarem a ficar dependentes da comida das outras aldeias. Os funcionários da aldeia tinham muitas ideias bastante complexas, às quais tinham dedicado muitos dias de análise, para explicar o que tinha acontecido, mas todas se contradiziam entre si. O Esquerdix e o Sindicalix disseram que a culpa era dos dois irmãos, do Direitix e dos "novos Capitalix". O Direitix disse que a culpa era dos dois irmãos, do Esquerdix, do Sindicalix e de quem tinha vindo de outras aldeias. Quem tinha vindo de outras aldeias não disse nada porque estava a ir-se embora. O Centralix disse que a culpa era do Centrolix. O Centrolix disse que a culpa era do Centralix. Entretanto, enquanto isto acontecia no centro da aldeia, os javalis rebolavam felizes com as suas famílias numerosas nos terrenos há muito por cultivar que a rodeavam.

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