sábado, 16 de outubro de 2010

Eu

Pá eu acho que os 100 anos da República foram aproveitados ao máximo. É sempre mágico ver como, independentemente da sua falta de organização, planeamento, cooperação, iniciativa, etc. os portugueses conseguem sempre por ocasião de qualquer efeméride, real ou criada por um qualquer jornalista mais oportunista - no fundo não interessa, reunir-se em uníssono para celebrar num grande evento a nível nacional, através daquela que é de longe a nossa actividade favorita: a crítica alarve, arrebatada, apocalíptica e sobretudo totalmente desprovida de fundamentação (se for alarve, arrebatada, apocalíptica mas tiver uma base factual, tipo o Al Gore a falar do aquecimento global, não serve, é preciso praticar mais!).

Que eu tenha conhecimento, mas corrijam-me por favor se estiver errado, não houve nenhum spam de sms, campanha telefónica ou televisiva e nem sequer umas avionetas a passar com uma  mensagem qualquer mas, assim que se começou a aproximar a data, em todo o país, pessoas que nunca discutiram na vida a República ou leram algo sobre ela ou que sequer fazem alguma ideia do que é, começaram lentamente e de forma totalmente sincronizada a sentir um calor crescente vindo das suas entranhas, uma comichão, um mal estar, uma insatisfação que se foram tornando cada vez mais intensos até, no limite da resistência, já não poderem ficar contidos e se libertarem numa cacofonia monumental.

Em Freixo de Espada à Cinta a Dona Deolinda gritou da sua horta para a vizinha que "quando mataram o Rei mataram Portugal!", na Castanheira do Ribatejo o Sr. Joaquim Antunes, Quim para os amigos, exclamou irado a todo o grupo com quem partilhava as imperiais e o pires de caracóis na tasca do Chico que "este país é desde há cem anos um covil de ladrões!" e até o Joãozinho...aliás o Gui (tenho que me lembrar que os miúdos agora se chamam todos Guilherme!) de São Brás de Alportel ao chegar a casa arriscou: "No tempo do Salazar é que era bom!", tendo sido imediatamente levado por uma orelha para o quarto onde ficaria de castigo por ter elogiado um governante dos últimos cem anos.

Confesso mais uma vez que fico maravilhado com este espectáculo que se repete de tempos a tempos e que só consigo comparar a uma erupção vulcânica, com a grande vantagem de, se mantiver a boca calada, não correr o risco de ser mergulhado em rocha líquida incandescente até ficar totalmente carbonizado.

Esta é também a ocasião ideal, aproveitando o consenso momentâneo, para afirmar aqui que sou a favor da Monarquia. Adianto ainda, depois de comparar demoradamente as mais diversas opções, que penso ser eu próprio a melhor escolha para Rei de Portugal. Aliás, não penso, sou a melhor escolha! Aliás, não sou a melhor escolha, já sou o Rei! Já sou o Rei e pronto! Não sei se foram informados mas eu já sou neste momento o Rei de Portugal. Não venham com lamurias de ser inesperado e não terem tido possibilidade de contribuir para a decisão porque agora são todos meus súbditos e a vontade Real é que conta (é óbvio que sou um Rei absolutista). Como nem a primeira Monarquia nem a República foram validadas pela opinião popular através de referendo, ninguém pode questionar a legitimidade deste novo regime.

Eu compreendo que por enquanto muita gente ainda esteja pouco convencida com esta mudança mas tal como é dito e repetido constantemente por defensores da Monarquia, um dos grandes benefícios deste sistema político é que o chefe de Estado é preparado desde a infância para ocupar esse cargo e, não fugindo à regra, posso confirmar que esse foi o meu caso. Beneficiando da rica herança genética e dos ensinamentos acumulados desde tempos imemoriais pelos meus antepassados, posso afiançar que a minha vida até agora tem sido uma busca contínua de levar até níveis nunca alcançados a capacidade de crítica alarve, arrebatada, apocalíptica e sobretudo totalmente desprovida de fundamentação e se não for essa a capacidade distintiva do Rei de Portugal então não sei o que é.

Desde cedo que identifiquei no meu pai o exemplo do que quereria ser quando crescesse: a capacidade aparentemente inata para, sem levantar o rabo da poltrona, reduzir a uma insignificância humilhante qualquer pessoa que aparecesse na televisão, independentemente de quem quer que fosse ou do que fizesse. Aliás, nem sequer conhecer a pessoa não a salvava, tornava apenas mais reduzido o conjunto de críticas que se podiam fazer o que só aumentava o prazer do exercício.

Outra capacidade notável era a de conseguir discutir um tema qualquer durante horas sem interrupção, isto obviamente sem nenhuma preparação prévia ou mesmo com um total desconhecimento do assunto. Independentemente disso, a ideia apresentada não era assumida como ideia mas sim como a verdade absoluta e universal e alguém que ousasse apresentar argumentos que defendessem uma opinião contrária era logo colocado no seu lugar através de uma crítica sarcástica apresentada de forma paternalista e condescendente para clarificar de uma vez por todas onde estava a razão.

Com o fim em mente comecei então a percorrer o meu caminho, tentando primeiro conhecer os temas em debate para poder fazer as minhas primeiras críticas. Com mais experiência logo me dedicaria a criticar sem qualquer conhecimento da matéria. Confesso no entanto que não foi fácil porque me faltava claramente a prática: "[Eu] Epá o Álvaro Cunhal já cansa. Diz sempre a mesma coisa!" "Cala-te!" ou "[Eu] Aquele Chalana é mesmo brinca-na-areia, não sai do mesmo sítio!" "Cala-te!". Percebi que começar por temas tão comuns seria uma má estratégia de entrada e então decidi apostar em nichos de mercado: "O Ramalho Eanes não consegue mesmo dizer duas frases seguidas, deve ser preciso uma lupa para descobrir massa cinzenta naquela cabeça, eheh" "[Eu] Pois, é como um Stegosaurus que era do tamanho de um autocarro mas tinha o cérebro do tamanho de uma noz! Eheh" "..........(Expressões faciais de interrogação) ...............Cala-te! Raio do puto!".

A minha evolução foi sendo feita assim, a pulso, de pequena vitória em pequena vitória e levou-me a pesquisar temas completamente diferentes, seguindo as modas de cada época, até conseguir criticar tudo o que mexa nem que seja só por analogia a outra coisa qualquer, sem conhecer na realidade o que está em causa. Procuro é não fazer uma crítica sem nenhuma argumentação, do género "Ah e tal a teoria das cordas pode fazer sentido mas é estúpida!" mas sim algo como "Então até o Einstein dizia que Deus não joga aos dados e agora querem convencer-nos que joga à cama do gato?"...não, continua a não ser muito bom. Hei-de pensar noutra coisa.

De qualquer forma, comigo como Rei, os portugueses têm finalmente alguém como seu representante que critica tudo sem excepção tal como é nosso apanágio. Com a República cada interveniente só criticava o que estava conotado com outra força política e com uma intensidade diferente de acordo com o mediatismo da questão, o local onde se encontrassem, acordos que tivessem feito com o outro partido ou que planeassem fazer, etc. o que era claramente insuficiente. Era escandaloso por exemplo que durante cada legislatura, cerca de metade dos deputados não criticassem ferozmente o governo só por serem do mesmo partido. Eu estou aqui para acabar com essa pouca-vergonha e prometo críticas permanentes a tudo e de uma forma totalmente alarve, arrebatada, apocalíptica e sobretudo totalmente desprovida de fundamentação.

Penso que depois desta argumentação já todos devem estar convencidos de que esta mudança é o melhor para Portugal. De qualquer forma, antes de vir a público fazer as minhas primeiras críticas vou certificar-me que as forças armadas e policiais são informadas da mudança de regime e que eu passei a ser a principal prioridade deles. É que isto de dizer que se é o Rei já tem precedentes e pode ser uma ameaça à integridade física. Por exemplo sei de uma pessoa há quase dois mil anos que de um dia para o outro lhe deu para começar a dizer: "Eu sou o Rei dos Judeus.". Ninguém ligou e por isso ele ficou um bocado ferido no seu orgulho. Resolveu então ir ao templo e desatou a espatifar as bancas dos comerciantes antes de repetir: "Eu sou o Rei dos Judeus!" desta vez beneficiando da atenção da multidão estupefacta. Essa primeira sensação de vitória foi logo infelizmente substituída por uma de "Estou que nem posso!" quando a multidão o pregou a uma cruz de madeira o que imagino que deve ter aleijado bastante. Ainda por cima naquele tempo as técnicas para conservação da madeira eram muito rudimentares por isso quase posso garantir que a cruz tinha bicho o que deve ter acrescentado à dor umas comichões terríveis nas costas.

Para evitar ser submetido a este tipo de tratamentos menos elegantes a minha primeira prioridade será então, como dizia, garantir o apoio das forças de autoridade. Com isso conseguido, a minha segunda prioridade será nomear um cronista real que vá escrevendo sobre mim, o vosso Rei, nesta crónica designada "Eu".

2 comentários:

Ana disse...

Soube do "flash mob" que houve durante as comemorações? Uma meia duzia de monarquicos que apareceram de máscara e gritavam "viva o rei, viva o rei". Hum.

Achador disse...

Foram certamente leitores atentos deste blog! Fico feliz de já existirem apoiantes meus a manifestarem-se publicamente! Tenho que entrar em contacto com eles.

Já agora, podem tratar-me por tu. Quer dizer, ou tu ou Vossa Majestade, o que preferirem. Já você, fica ali no meio, não é carne nem é peixe.