terça-feira, 15 de março de 2011

O fundo da realidade


Pá eu acho que apesar da crise (tenho que utilizar esta fórmula mais vezes para aumentar a aceitação do que escrevo) uso mais "Pá eu acho que no fundo..." do que "Pá eu acho que na realidade..." para começar uma divagação sobre um tema qualquer que não pertença a nenhuma classificação óbvia como "em Portugal" por exemplo, e a minha mulher concorda. Apesar disso achei que se usasse "no fundo" como nome para esta parte do blog ia criar a expectativa de se tratar de um espaço onde ia falar de quem na minha opinião tinha estado menos bem na última semana ou na noite dos Óscares ou no concurso miss t-shirt molhada da concentração de motas de Faro ou algo do género, o que não faz mesmo nada o meu estilo. Para alguém ser referido neste blog ou é porque vou falar muito bem ou é porque vai levar com um barril de napalm.

Para evitar confusões vou então usar "na realidade", se bem que isto acaba por ser um contra-senso já que nada é tão confuso como a realidade, como sabem todos os que viram o filme The Matrix: "What is "real"? How do you define "real"?" e principalmente todos os que já usaram e abusaram de substâncias psicotrópicas: "Aaaaghhhaaauuuaaa...". Mas no fundo a realidade só é confusa para nós porque tentamos compreendê-la e isso é simplesmente areia de mais para a nossa camioneta:

Todos os seres vivos são mecanismos que acumulam estímulos exteriores e executam determinadas reacções a esses estímulos (por exemplo o estímulo combinado desta frase introdutória e da quantidade de texto que ainda falta ler está neste momento a provocar uma reacção de extremo entusiasmo!). Com o aumento de complexidade de processamento dos estímulos, vão ganhando a capacidade de relacionar vários estímulos para uma reacção, guardar um registo dos estímulos recolhidos ao longo do tempo para conseguir uma reacção mais precisa mesmo que momentaneamente não existam estímulos (memória) e até a nossa faculdade de visualizar estímulos que não aconteceram e quais seriam as reacções possíveis (imaginação).

O encadeamento dos três tipos de processamento acontece naturalmente em nós. Um exemplo comum: é o primeiro aniversário do Martim (a ultrapassar Guilherme na lista de preferências pelo que ouço dizer (esforço hercúleo para me ficar por aqui - talvez num próximo napalm)) e ele está fascinado com a única vela em cima do bolo. A cor, luz e movimento são estímulos que motivam a exploração. Num momento de distracção geral consegue tocar na chama e recebe logo o estímulo de dor com uma intensidade que se sobrepõe aos outros e reage como todos sabemos. Este estímulo foi também intenso o suficiente para ficar guardado na memória e ele não voltará provavelmente a repetir a experiência (ok, com este nome deve precisar de repetir para perceber). Mais tarde quando se deparar com um fogão eléctrico, conseguirá imaginar o estímulo que receberá se tocar nele apesar de não existir chama.

Podermos imaginar faz com que tenhamos a dupla possibilidade de: ou continuar a reagir de acordo com os estímulos que sentimos, ou agir de acordo com a conclusão a que chegamos depois de visualizarmos aquilo que conseguimos imaginar sobre a situação. Tradicionalmente chamamos acto irracional à primeira possibilidade e racional à segunda tal como nos chamamos orgulhosamente racionais a nós e irracionais aos outros. A maior parte do nosso comportamento é motivado no entanto por estímulos reais e não imaginados, por isso quanto muito podemos ser "racionáveis", por termos a possibilidade de ser racionais pontualmente.

Quando falamos com alguém, por exemplo, estamos conscientemente focados na troca de palavras e mesmo antes, ao visualizar a conversa, só imaginámos essa parte ("se ele disser isto lembro-lhe aquilo...", etc.), no entanto existe um jogo inconsciente de troca de estímulos e reacções durante a conversa que vai definir todo o nosso comportamento (ok, há conversas em que nem sabemos o que estamos a dizer por estarmos focados noutro tipo de estímulos mas vamos assumir aqui que se trata de uma conversa típica). Até a única parte da conversa que seria supostamente racional (o discurso) por ser a única de que temos consciência, é modificada pelos estímulos que sentimos: tendo imaginado uma conversa ou até tendo um guião à nossa frente, mesmo assim não dizemos a mesma coisa a duas pessoas sendo uma do mesmo sexo e a outra de sexo oposto, uma nova e outra velha, uma percebida como socialmente ou profissionalmente inferior e a outra superior, estamos num dia "bom" ou num dia "mau", etc.

Como na maior parte dos casos não usamos a nossa imaginação, ficamos tendencialmente presos aos estímulos que tivermos acumulado. Uma pessoa que tiver passado a infância a ouvir que indivíduos de outra raça, religião, nacionalidade, etc. têm uma determinada característica, só deixará de acreditar nisso se acumular estímulos suficientes em sentido contrário, ou se conseguir imaginar que essa opinião não é verdadeira ou que pelo menos deixou de ser verdadeira. A imaginação só funciona a um nível consciente no entanto, daí termos fenómenos como o racismo não explícito. De qualquer forma imaginar essas hipóteses também reequilibra a intensidade dos estímulos recebidos (quem acredita firmemente em algo ignora 9 estímulos contrários em 10 e vê o último como a confirmação).

Isto é mais fácil de dizer do que fazer claro. Especialmente porque, mais uma vez, não estamos isolados. Tendo em conta que os estímulos provocam-nos reacções irracionais e que existem mais estímulos quando estamos em grupo, pela lógica a racionalidade de um grupo não organizado é inversamente proporcional à sua dimensão, como sabem bem todos os que já participaram em reuniões de grupos grandes, assembleias (incluindo a da República), etc.

Quando nos perguntamos como é que foi possível todo um país seguir cegamente um louco numa guerra que matou milhões, a resposta passa fundamentalmente pela utilização da tal irracionalidade das massas alimentada por uma contínua sobre-estimulação com as ideias do regime. A inovação foi o uso como estímulo do método de propaganda "A grande mentira" preconizado pela célebre frase "uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade". Até lá ninguém tinha imaginado que uma população inteira fosse influenciável por uma mensagem claramente errada mesmo que repetida até à exaustão. No fundo trata-se apenas de trazer para a Psicologia o conceito de explosão como visto pela Física: estimulação externa de um determinado material para que se inicie nele uma reacção em cadeia que leva a uma libertação súbita de energia.

Mas para acontecer este tipo de fenómeno não é necessária uma decisão consciente, basta que exista o estímulo suficiente para começar a reacção auto estimulante como em fogos florestais, furacões, etc. Algo do género é o que existe em Portugal provavelmente desde o fim do séc.XVI. Com a contínua perda de importância internacional, riqueza, território e até conhecimento, gerou-se uma onda de derrotismo, vitimização, apatia, sarcasmo, etc. que se tem auto reforçado continuamente até hoje e para alguém fugir dela é preciso isolar-se durante algum tempo de tudo o que seja comunicação social e até mesmo de conversas de grupo porque já é algo totalmente enraizado na nossa cultura. Para todo o país mudar a mentalidade será preciso existirem estímulos em quantidade suficiente que contrariem a ideia mas isso é exactamente o que essa atitude tem impedido. Conseguir que uma parte significativa da população tenha tido a experiência de viver noutra cultura durante algum tempo será talvez o contributo possível de maior impacto.

Individualmente, a única forma de escapar a esse processo estímulo - reacção é então a imaginação. Como é que conseguimos fazer dieta apesar de todos os estímulos nos motivarem a comer maior quantidade e alimentos com maior valor energético? A resposta óbvia é: por imaginarmo-nos mais atléticos, saudáveis, etc. e esse estímulo ser forte o suficiente para bloquear a reacção que ocorreria por defeito. Na realidade, no entanto, arrisco-me a dizer que na maior parte dos casos as pessoas fazem dieta reagindo a estímulos de pressão social já que todos estamos bastante conscientes de qual deve ser o aspecto físico ideal e da hierarquização que é feita com essa base. Pegando numa pessoa que faz uma dieta rigorosa, supostamente por preocupações de bem-estar, saúde, etc. e colocando-a sozinha num supermercado que se auto reabastecesse eternamente e ela tivesse a clara consciência de que nunca mais ia estar com ninguém, será que continuava a comer na secção da fruta e legumes ou passava a ir para os doces? Eu posso dizer que ia para os queijos e enchidos!

Provavelmente não existe nenhum comportamento generalizado que seja motivado pela imaginação mas com ela conseguem-se grandes feitos e avanços civilizacionais. Uma pessoa que tenha uma visão, um sonho, etc. e se agarre a isso para decidir as suas acções independentemente dos estímulos que receber será muito mais provavelmente bem sucedido, pelo menos na realização desse sonho. Em vez de ou para além de reagir aos estímulos do grupo em que está inserido terá também iniciado um novo encadeamento de estímulos porque quem o rodeia irá reagir ao seu comportamento inovador. Com insistência própria e receptividade do grupo, o encadeamento de reacções pode atingir uma dimensão enorme como no caso de grandes líderes.

A nossa imaginação é no entanto, ao contrário do que é costume dizer, muito limitada. Conseguimos imaginar tudo, mas poucos cenários de cada vez (como sabem todos os que já fizeram um sudoku de nível difícil, jogam xadrez, etc.). Por isso é que para compreendermos alguma coisa temos a tendência de a isolar de tudo o resto para que todas as hipóteses sejam possíveis de imaginar simultaneamente. O problema é que quase tudo funciona em interacção com o que o rodeia, tal como nós numa conversa, por isso o isolamento conduz normalmente a conclusões incorrectas porque transmitem uma imagem de linearidade (um estímulo - uma reacção) que não existe num ambiente não isolado. Em não isolamento os comportamentos seguem normalmente o tal padrão de acumulação de estímulos até desencadear uma determinada reacção como: tensão das placas tectónicas até provocar um terramoto, peso da neve até provocar uma avalancha, número de clientes antipáticos até passarmos a tratar mal quem nos apareça à frente, número de erros até sermos despedidos, número de parágrafos até desistirem de ler o post (já chegaram até aqui, só mais um esforço vá lá!). Tudo isto não é linear e não permite conclusões porque não conseguimos imaginar todos os estímulos envolvidos - é confuso, é o caos.

A realidade é então confusa porque não conseguimos imaginar mais que uma pequena fracção de tudo o que a compõe. No entanto, se por um momento deixarmos de nos preocupar em compreender e focarmo-nos só em sentir, ficamos mais conscientes dos estímulos que nos estão a afectar num determinado momento (quente, áspero, doce, sereno, brisa, saudade, etc.) e com o seu conjunto conseguimos ter uma visão de uma pequena parte da realidade - uma visão da nossa realidade. Se aproveitarmos a oportunidade para materializar o que sentimos nesse momento, de uma forma qualquer, não pensada, não estruturada, acima de tudo não compreendida, nasce a obra de arte. Este continua a ser o nosso melhor processo de descrever e partilhar a realidade mas também o menos...compreendido.

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Este post acabou por ficar mais uma dissertação que outra coisa por isso para evitar que me levem a sério acho melhor fazer um alerta:

Aviso legal:
O autor do texto acima não teve a mínima preocupação em fundamentar devidamente o que escreveu, na maior parte dos casos porque o que escreveu não tem qualquer fundamento. Agora a sério: este gajo não percebe nada do que está a dizer por isso não o citem em conversas, textos, ou outras ocasiões potencialmente embaraçosas porque ninguém deste blog será responsável solidariamente por nada a não ser pela gozação resultante.
A leitura deste aviso não dispensa a leitura do post.

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